A essência da Arábia Saudita envolve um sem número de rituais estranhos ao comum ocidental. Nos horários a cumprir, no rigoroso culto religioso, na forma serena e descuidada com que encara os critérios de segurança.

Cinco meses em Jeddah, cidade com mais de três milhões de habitantes, permitiram a Vítor Pereira enraizar nas suas preocupações todos estes temas. Afinal, no plantel do Al Ahli, 90 por cento dos jogadores são muçulmanos e respeitam com fervor os mandamentos do Islão.

No verão, quando chegou, Vítor Pereira teve ainda outro obstáculo: o calor irrespirável. «Os treinos começavam às 23 horas, acabavam à uma da manhã e jantávamos às três», conta o antigo treinador do FC Porto, bicampeão nacional, ao Maisfutebol.

«Depois passámos a começar às 21h30 e agora estamos a treinar às 19 horas. Não é fácil ajustar tudo isto», explica Vítor Pereira. E deixa mais dados.

«Os meus jogadores, tal como os restantes cidadãos, fazem cinco orações por dia. A primeira é às cinco da manhã e por isso eles ficavam acordados sempre até essa hora. Só depois iam descansar. Acordavam às quatro da tarde. O dia para eles começava aí».

«Agora já há música no balneário»

Mudanças subtis nos hábitos da equipa permitiram criar algum equilíbrio no frágil ecossistema do profissionalismo vs. religião. «Quis implementar a obrigatoriedade do pequeno-almoço, para mim importante, mas eles no início chegavam cansadíssimos. O mesmo se passava nas viagens para Meca».

Sim, o Al Ahli joga frequentemente na cidade santa. E para lá chegar o autocarro da equipa tinha de passar vários check point. Por isso, a partir de determinada altura a comitiva ficou a estagiar numa cidade mais pequena, a uma hora de distância.

«Cada jogo fora implica uma viagem de avião. Se juntarmos a esse desgaste aquele que já era imposto pela falta de descanso e horários, imagine como os meus atletas chegavam às partidas».

Chegados aos estádios, os problemas continuavam. «O ambiente no balneário era terrível, era um ambiente de oração. Cada um ficava no seu canto, rezava quase até à hora do jogo e ia para o jogo numa terrível empatia. Tive de mudar tudo isso, apesar da resistência dos capitães de equipa».

Vítor Pereira respeita profundamente as convicções dos atletas, mas exige também máximo profissionalismo. Os jogadores continuam a rezar, mas mais cedo, de forma a interiorizarem o ambiente de jogo com outra alegria e energia.

«Já há música no balneário e a atmosfera é mais normal».

Clubes e adeptos rivais no mesmo hotel? Sim, é possível

O dia-a-dia de Vítor Pereira é, acima de tudo, repetitivo. «Deito-me tarde, mas de manhã acordo e ainda vou ao ginásio. Almoço e sigo logo para o clube. Passo as tardes a preparar os treinos e em reuniões. Aqui há reuniões quase diariamente».

Ao longo da conversa, várias vezes, Vítor Pereira faz questão de elogiar a natureza do povo saudita. E deixa mais uma história, como prova inequívoca dessa forma de ser.

«O país é seguríssimo. Os carros ficam ligados à porta do meu hotel e ninguém lhes toca. E não é só isso. Imagine que jogamos contra um adversário direto na luta pelo título. Os dois clubes ficam no mesmo hotel e os adeptos entram e saem sem problemas. Os adeptos das duas equipas, veja bem».

«Eu tinha uma imagem desfocada desta gente», reconhece Vítor Pereira, lembrando ainda que as medidas disciplinares para os incumpridores são «muito severas».

«Não há problemas, em casa ou fora. Temos seguidores em todo o lado, em todos os aeroportos, e andamos seguros. Quem ler isto talvez não acredite, mas podemos estar a perder e as pessoas incentivam sempre».

Os estádios, aliás, costumam estar bem compostos. «O meu clube está a fazer um estádio novo, para 80 mil pessoas, mas o atual está sempre a abarrotar. Estas pessoas merecem que eu lhes dê o título. Já lhes foge há 30 anos».

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