A 2 de Outubro de 1994, Sergei Yuran entrou pela primeira e única vez no estádio da Luz com a camisola do FC Porto. Ao fim de três épocas polémicas, a dividir opiniões nos adeptos do Benfica e nos companheiros de equipa, o russo foi fiel a si próprio: respondeu às vaias constantes com um golo, aos 66 minutos, e com uma expulsão, oito minutos depois. Ficou para a pequena história o desabafo de Mozer, no rescaldo do empate a um golo. O central brasileiro, que tivera vários desentendimentos com os russos quando partilhava o balneário com eles, lamentou a falta de sorte num jogo dominado pelos encarnados e concluiu com algum veneno: «fomos melhores mas tivemos um acidente, o Yuran acertou um chute».


Este episódio ilustra um lado folclórico dos clássicos: aquele em que jogadores saltam a barreira e voltam ao antigo estádio com a camisola do rival. Uma história recente, que neste caso tem um significado acrescido: é que Yuran - que não ficou propriamente na galeria dos imortais em nenhum dos clubes por onde passou, mas antes disso já tinha marcado três golos ao FC Porto - é apenas um de dois jogadores que marcaram pelos dois lados, na história dos jogos oficiais entre Benfica e FC Porto. O outro é o avançado Serafim, já falecido, que em nove clássicos da década de 60 marcou dois golos pelo FC Porto e um pelo Benfica.

No tempo em que se partilhavam autocarros

A história dos «agentes duplos» em clássicos é relativamente simples de contar. Do início da Liga até finais da década de 70 resume-se a meia dúzia de casos episódicos. Nessa altura, como lembra Toni, a rivalidade entre Benfica e FC Porto era feita em tons moderados. «A rivalidade que fazia parar o país era com o Sporting. Como jogador, ainda sou do tempo em que os clubes cediam o autocarro à equipa adversária, para a levar ao estádio quando jogava como visitante. No Porto, o autocarro do FC Porto ia buscar-nos ao hotel, e nos jogos em Lisboa era ao contrário. Era uma mensagem de bom relacionamento que se passava aos adeptos e diminuía o risco de incidentes», lembra.

Daí que na altura não houvesse registo de «guerrilha» ou de desvio de jogadores de um clube para outro. A lei de opção, que amarrava os jogadores aos seus clubes, também não permitia grandes devaneios. As trocas, quando as havia, eram por consenso. «Lembro-me do caso do Serafim, que em 1962 se transferiu do FC Porto para o Benfica, mas por acordo entre os dois clubes», conta ainda Toni. Os números dão-lhe razão: dos 29 jogadores que vestiram as duas camisolas dos clássicos, só cinco o fizeram antes do 25 de abril:  Francisco Ferreira, nos anos 30, António Teixeira, na década de 50, Serafim e Artur Jorge, nos anos 60, e Jacinto, em 1971.

Veio o 25 de abril e o fim da lei de opção. O trânsito entre a Luz e as Antas, ou vice-versa, começou a fazer-se com maior frequência, com ou sem etapas intermédias: Carlos Alhinho, Eurico, Romeu e Vital aumentam a lista de agentes duplos. Data dessa altura, também, o renascer do FC Porto como grande potência desportiva, no início da era Pedroto-Pinto da Costa. No arranque da rivalidade, o relacionamento ainda era pacífico: «Quando Pedroto morreu, em janeiro de 1985, toda a equipa do Benfica, que estava a estagiar em Braga, se deslocou ao velório, no pavilhão das Antas», lembra Toni. Mas a crispação não tardaria a chegar.

Dito e Rui Águas, momento de viragem

No verão de 1988, pouco depois da final da Taça dos Campeões perdida pelo Benfica diante do PSV Eindhoven, o FC Porto lança uma espécie de OPA hostil na Luz. O impasse nas renovações de contrato é aproveitado para contratar uma referência defensiva dos encarnados, Dito, e, principalmente, o ponta-de-lança Rui Águas que, além dos golos, tinha ainda o património simbólico de ser filho de José Águas.

Ainda Toni, com as memórias: «Lembro-me de que a minha primeira preocupação era a de encontrar um grande central, que foi o Ricardo, porque no ataque ainda tínhamos o Magnusson». Em outubro de 1988, o regresso de Rui Águas à Luz, com a camisola do FC Porto, marca um momento de tensão, que acaba diluído no empate sem golos. No anúncio da constituição das equipas, o «speaker» de serviço na Luz refere o número 9 portista como «Rui», explicando mais tarde que não o considerava digno do apelido.

Nesse ano o Benfica até reage bem e acaba por sagrar-se campeão, com Vata e, principalmente, Ricardo Gomes a ocuparem com lucro as vagas abertas no verão. Mas pode dizer-se que esse marca um ponto sem retorno na relação entre os dois clubes. Com episódicos momentos de acalmia, e numa altura em que as intromissões do Sporting na luta pelo título se tornavam bem mais esporádicas, a rivalidade sobe de tom.

Isso reflete-se no aumento de jogadores em trânsito entre Luz e Antas: os casos de Yuran e Kulkov, em 1994, anunciam uma tendência da década de 90, que coincide com o enfraquecimento da gestão desportiva do Benfica. «Via-se uma política de guerrilha, com bicadas que nem sempre tinham sucesso, para servir de bandeira à rivalidade», lembra Toni a propósito de nomes como Panduru, Kenedy e Jankauskas, entre outros que jogam clássicos dos dois lados do fosso. Nenhum deles atinge a projeção de Maniche e, principalmente, de Deco que, depois de uma passagem pela Luz sem chegar a vestir a camisola encarnada, se torna na grande referência do FC Porto à entrada para o século XXI.

O Benfica vai respondendo, mas nomes como Argel, Drulovic, Zahovic ou João Manuel Pinto não trazem para a Luz o sucesso que tinham no Porto. Toni relembra os anos difíceis que se seguiram ao tal golo de Yuran no princípio do texto: «Entre 1994 e 2001, viu-se quase sempre um Benfica de navegação à vista, sem rumo definido. Do outro lado, o FC Porto, que ia consolidando o poder a vários níveis, também tomou opções erradas. Mas fê-lo muito menos vezes que os rivais».

«Comecem por respeitar-se»

Interveniente direto em 40 clássicos (23 como jogador, 17 como treinador principal), Toni aproveita para lembrar uma evidência, a propósito do desabafo de Mozer: «Normalmente, esta é uma questão mais sensível para os adeptos do que para os jogadores. O público tem muito menos tolerância e por hábito vaia os seus antigos jogadores. Para quem está dentro do jogo, as relações mantêm-se, não se confunde o pessoal com o profissional. Mas, claro, sofrer um golo de um ex-companheiro acaba por doer um pouco mais», admite.

No clássico deste domingo, porém, é certo que não haverá «agentes duplos» no relvado da Luz. Os últimos a completar a travessia, em sentidos opostos, foram César Peixoto e Cristián Rodríguez, que saíram de cena nos clássicos em 2012. Ao contrário do que tem acontecido nos jogos entre FC Porto e Sporting (Moutinho, Liedson, Izmaylov), não haverá esse ingrediente extra a aquecer os ânimos na Luz.

E, também por isso, no rescaldo de uma semana difícil, Toni fecha o livro de memórias com um pedido: «Este clássico é só mais um clássico numa longa lista, mas tem uma carga emocional muito forte, pelo que sucedeu esta semana. Por isso, desejo que todos os intervenientes diretos no jogo, e os adeptos, comecem por respeitar-se a si próprios, respeitando também o adversário. É a única maneira de homenagear o grande jogador, desportista e Homem chamado Eusébio», conclui.

Jogadores que alinharam em clássicos pelos dois rivais

Alhinho 8 (6 pelo Benfica/2 pelo FC Porto)
António Teixeira, 18 (1/17)
Artur Jorge, 10 (9/1)
César Peixoto, 7 (5/2)
Cristian Rodríguez, 12 (2/10)
Derlei, 6 (1/5)
Dito, 7 (6/1)
Drulovic, 22 (3/19)
Eurico, 22 (7/15)
Fernando Mendes, 7 (3/4)
Francisco Ferreira, 34 (29/5)
Futre, 17 (1/16)
Hugo Leal, 2 (1/1)
Jacinto, 14 (13/1)
Jankauskas, 5 (1/4)
João Manuel Pinto, 6 (2/4)
Kenedy, 6 (5/1)
Kulkov, 11 (8/3)
Maniche, 12 (5/7)
Ovchinnikov, 4 (1/3)
Paulo Pereira, 13 (3/10)
Romeu, 12 (2/10)
Rui Águas, 22 (18/4)
Serafim, 9 (2/7)
Silvino, 17 (14/3)
Tiago César, 3 (2/1)
Vital, 5 (2/3)
Yuran, 13 (10/3)
Zahovic, 15 (7/8)

A negro, os jogadores que marcaram pelas duas equipas.