Pedro Ferreira cumpre os primeiros dias de uma ligação de três épocas ao Nottingham Forest, onde vai chefiar o recrutamento da equipa da Premier League que é treinada por Nuno Espírito Santo.

Para trás ficam 17 anos de ligação profissional ao Benfica e muitos mais de conexão sentimental.

Aos 41 anos, o homem que chefiou o departamento de scouting do futebol profissional dos encarnados nas últimas cinco épocas e meia e que, antes disso, liderou a prospeção da formação do clube ao longo de sete anos, admite que estava na altura de sair da zona de conforto e de perceber que há vida para lá do clube pelo qual se confessa apaixonado. E de crescer enquanto profissional para, que sabe, um dia voltar a «casa».

Numa longa entrevista ao Maisfutebol, a primeira após a saída do Benfica, Pedro Ferreira passou em revista, de uma área à outra do campo, o percurso nas águias.

Desde a chegada em 2007, como adjunto de uma equipa de benjamins que tinha acabado de receber Renato Sanches, quando ainda era estudante e árbitro de futebol, à passagem para o departamento de prospeção e o caminho para ultrapassar os anos – ou décadas – de atraso em relação ao eterno rival Sporting e ajudar a fazer do Benfica uma referência também na prospeção de jovens talentos.

Pelo meio, foi um dos intervenientes na ida de João Félix do FC Porto para o Benfica em 2015, processo que recorda numa das partes desta conversa.

Em 2019, num período de «introspeção» no clube, passou a liderar o departamento de scouting do futebol profissional do clube, que desde então fez as três maiores vendas de sempre: de João Félix, de Enzo Fernández e de Darwin, todas com a contribuição dele e do seu – como lhe chama – «departamento de soluções», através da identificação talentos desde a formação até à elite.

Na última época, mais do que casos de sucesso, foram notícia os chamados «erros de casting» do Benfica no mercado. Jurásek, contratado por 14 milhões de euros para ser o substituto de Grimaldo, não resultou e nenhuma das opções para a frente do ataque fez esquecer Gonçalo Ramos enquanto a escassos quilómetros da Luz um outro avançado trazia fartura ao Sporting. Temáticas que pode ler nesta parte da conversa com Pedro Ferreira.

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Parte I - «Detetávamos o jogador, falávamos com o pai e ele dizia que ia ligar ao Sporting»

Parte II - «Era obrigatório colocar pelo menos uma dúvida na cabeça dos pais do João Félix»

Parte III - «Futebol profissional? Pressão de não falhar existiu desde o dia em que entrei no Benfica»

Parte V - «Parece-me difícil o Nottingham contratar jogadores ao Benfica neste momento»

Maisfutebol – Quando uma equipa muda de treinador, muda a ideia de jogo e o perfil de jogadores que se pretende. Quão desafiante é isso para um departamento de scouting?

Pedro Ferreira – É muito desafiante. E ainda bem, porque isso motiva e leva-nos a estar em constante reciclagem e reformulação de ideias para não pensarmos que as coisas só funcionam de uma forma. Há a ideia do clube, o modelo de jogo do clube e o modelo de jogador do clube, que no Benfica é claramente um jogador vencedor. Tudo isso é verdade, mas claramente que há depois o input de cada treinador. E nós tínhamos de olhar para o que o treinador fazia para tentar identificar jogadores que fossem ao encontro daquilo que era a sua ideia de jogo.

Portanto, jogadores que estavam altamente referenciados pelo scouting ontem, podem não ser válidos para hoje se o treinador for outro…

Podem não ser válidos. Não é que eles sejam bons ou maus, mas sim se correspondem àquilo que nos é pedido. A beleza do scouting não é os jogadores serem bons ou maus. Quando me perguntam se eu gosto de um determinado jogador, eu pergunto: «Gosto deste jogador para quê?» Não se contrata em função dos nossos gostos pessoais, mas em função daquilo que se pretende. E essa é a riqueza do scouting. O segredo é, acima de tudo, perceber que os jogadores são contratados para responder a algo. Não apenas porque são bons, mas sim porque têm transfer para aquilo que se pretende.

«Subi as escadas, chamei a minha equipa de trabalho e fomos automaticamente observar as equipa do mister Roger Schmidt. Olhar de forma massiva para o que fazia o seu Bayer Leverkusen, o seu RB Salzburgo e o seu PSV»

Fará sentido que o departamento de scouting seja um dos primeiros a ter conhecimento de quem é o próximo treinador do clube, para que possa debruçar-se sobre a ideia de jogo dele e seja identificado o perfil de jogador que ele privilegia para os diferentes setores…

E isso aconteceu de uma forma clara quando o Roger Schmidt chegou. O presidente Rui Costa chamou-me num dia à hora do almoço e disse-me: «Pedro, ainda é segredo, mas o mister Roger Schmidt vai ser o nosso treinador para o ano. Portanto, tenham isso em ideia.» Subi as escadas, chamei a minha equipa de trabalho e fomos automaticamente observar as equipa dele. Olhar de forma massiva para o que fazia o seu Bayer Leverkusen, o seu RB Salzburgo e o seu PSV. E isso foi óbvio para começarmos a identificar – antes de começarmos a falar com o treinador e a ter respostas no dia a dia, até porque ele continuava a treinar o PSV – aquilo que na nossa ideia era o padrão do Roger Schmidt. E havia jogadores que naquele momento estavam na equipa sombra como alvos prioritários e que deixaram de o ser. E outros em que se potenciou o interesse.

Equipa sombra é…?

Equipa sombra são jogadores que achamos que respondem àquilo que o Benfica quer. Um conjunto de cinco, seis, sete jogadores por posição que achamos que têm nível para jogar no Benfica. Naquele momento, a equipa sombra mais geral é uma equipa homogénea na qualidade e heterogénea nas características para responder aos tais perfis diferentes que nos podem vir a pedir. Porque podem estar a pedir-nos um perfil, mas o futebol é tão volátil que às vezes durante a época o treinador quer um perfil claramente disruptivo e temos de ter essas soluções. Mas depois temos uma equipa sombra mais reduzida, com jogadores mais «target», em função dos jogadores que se quer no momento. E houve jogadores que estavam naquele lote mais «target» e se podiam começar a negociar para as ideias de jogo que se pensava que iríamos ter que se mantiveram e houve outros que saíram, porque não iam ao encontro do que identificávamos. Na altura debatemos bastante com o Rui Pedro Braz: «Ok, o presidente passou-nos isto, estas são as ideias-chave da forma de jogar do mister Roger Schmidt, estes são os jogadores de que estávamos a falar, estes são os que podem ter maior transfer e estes menos. E, depois, foi muito o trabalho direto do Rui Pedro Braz com o mister Schmidt e a sua equipa técnica a propósito dos alvos que tínhamos, de quem achávamos que tinha maior transfer, entre eles alguns que já estavam num processo de contratação.

Nessa equipa sombra cabem também jogadores da formação do clube?

Nessa equipa sombra cabem jogadores de todo o Mundo, não jogadores da formação do clube. Mas havia um conhecimento claro dos jogadores da formação.

Com qual dos treinadores houve maior comunhão de ideias e uma maior aceitação dos jogadores que o scouting identificava e recomendava?

Sinceramente, não consigo responder à questão dizendo um nome. Mas se não houvesse comunhão de ideias, o problema era nosso. Nós temos de fazer perguntas. Não faz sentido estarmos a incomodar todos os dias, mas no departamento de scouting olhávamos muito para isto e chateávamos os diretores-gerais, os diretores-desportivos e os presidentes para tentar perceber o que se pretendia. E tentávamos sempre ir ao encontro disso. Houve coisas muito bem feitas com todos os treinadores. Falando e percebendo o que se quer, é mais fácil. Mas é lógico que há jogadores que entram e que desiludem toda a gente, como outros que entram e que surpreendem pela positiva. E esses exemplos devem levar-nos a trabalhar melhor: «Porque é que este correu mal? Porque é que não o conhecíamos bem? Se calhar falhámos aqui nesta questão da personalidade.

«O departamento de scouting é um departamento de soluções: se nos colocamos contra quem quer que seja, seremos um departamento de problemas. E assim não vale a pena lá estarmos»

Mas um scout só se pode desiludir com um jogador que é contratado e que fazia parte da sua shortlist, não?

Há duas portas de entrada na equipa principal. O jogador que entra através de um processo em que é identificado e selecionado pelo scouting, sendo posto depois à consideração da direção e da equipa técnica, cabendo-lhes depois essa decisão. Eu costumo sempre dizer que tentamos influenciar a decisão com o nosso trabalho e cabe depois às pessoas decidir.

Segunda porta de entrada…

Outra via, que eram os jogadores que podiam ser indicados pela própria direção e pelo próprio treinador. E era-nos pedida a opinião. Nós desde o princípio que dissemos que também queríamos opinar e era-nos pedida a opinião. Depois, havia um processo normal que levava a uma comunhão de ideias acerca do que aquele jogador podia acrescentar dentro do que estava a ser pedido, ou podia haver uma ideia diferente, em que uns achavam que era mais por aqui do que por ali, ou uns achavam que respondia àquilo que era pedido e outros não. Independentemente de o scout dizer mais sim ou menos sim, a partir do momento em que o jogador era contratado, todos queríamos que ele tivesse sucesso. Passava a ser jogador do Benfica e não interessava se tinha entrado por A, B, C ou D. Trabalhamos sempre como um todo para uma instituição.

Mas como é que se gere o ambiente quando há uma grande divergência de opiniões relativamente a algum jogador? Por exemplo, num cenário em que um jogador desaconselhado pelo scouting é a escolha do treinador? É normal isso acontecer?

É normal isso acontecer, sim. Até porque não temos o dom da razão. No momento, o que se faz é tentarmos chegar a um consenso todos juntos. Lida-se com isso de uma forma normal. Estamos aqui para tomar decisões e aconteceram situações assim. Até de atletas que tiveram sucesso e que nós naquele momento achávamos que poderiam não ter sucesso. Muitas vezes percebemos que até estávamos a pensar mal e as pessoas que decidem acima de nós estavam a pensar muito melhor do que nós. Isso nunca pode ser celeuma. O departamento de scouting é um departamento de soluções: se nos colocamos contra quem quer que seja, seremos um departamento de problemas. E assim não vale a pena lá estarmos.

Seria sempre uma luta condenada ao fracasso dizer a um treinador que um jogador não encaixa na ideia de jogo dele, não?

Obviamente. Até porque a ideia de jogo é do próprio treinador. Nós estamos ali para dizer que a nossa leitura poderá ser uma, mas depois cabe a ele. E o treinador opina sobre os jogadores praticamente todos. Ele também não vai querer contratar um jogador para não ter sucesso: o treinador quer ganhar, tal como todos no clube. E o treinador é aquele cujo rosto é mais conhecido e aquele que sente mais pressão. E não quer errar. Por isso é que eu costumo dizer: as decisões devem ser assumidas como sendo de todos, para facilitar a vida a toda a gente.

Esta época falou-se muito de escolhas erradas do Benfica na composição do plantel. O próprio Rui Costa reconheceu que houve vários jogadores que não deram aquilo que se esperava. O Jurásek será o caso mais flagrante, até porque custou 14 milhões de euros e acabou por ser emprestado em janeiro. O próprio Roger Schmidt nunca negou que foi uma escolha dele. Era um jogador que estava referenciado pelo scouting?

O scouting conhecia todo e qualquer jogador que entrou no Benfica. O nosso dia a dia não é só identificar jogadores para jogar no Benfica. É também dizer que conhecemos, que temos um trabalho já feito sobre esse jogador e que ele tem determinadas características. Fazemos um trabalho global e temos de conhecer todos os jogadores porque somos profissionais da área.

Também para não serem surpreendidos quando o treinador vos apresenta um nome…

Claro. No caso do Jurásek, a Chéquia era um campeonato que acompanhávamos com muito afinco.

No ano anterior o Alexander Bah tinha sido contratado à mesma equipa, inclusive.

Exatamente. Logo por aí, logicamente que o conhecíamos. Mas eu costumo dizer: «Não foi o Roger Schmidt que contratou o Jurásek. Foi o Benfica. Ponto final. Tal como, usando um caso de sucesso, contratou o Enzo. Num acertou de uma forma rápida; noutro, até ao momento errou e vamos ver como será o futuro. E até ao momento errou porque ele não respondeu logo naquele tempo. O Jurásek vinha para substituir o Grimaldo e, provavelmente, era para jogar. Mas há contratações que são feitas pensando que o jogador vai responder daqui a dois anos, dois anos e meio, um ano ou um ano e meio. O próprio Grimaldo não começou logo a render quando chegou ao Benfica.

«Jurásek foi umaa escolha do Benfica. Estávamos todos no mesmo barco»

Mas quando se paga tanto por um jogador, é porque se quer rendimento imediato.

Depende. Tirando o ónus só do Jurásek, pode-se pagar muito porque naquele momento o muito é 18M e daqui a dois anos muito é 70M. Se acreditarmos num jogador, é tentar pagar aquilo que achamos que é razoável. Factualmente: o primeiro ano do Jurásek no Benfica não foi positivo e ele foi emprestado. Vamos ver o que o futuro dirá.

Mas sendo uma escolha óbvia do treinador Roger Schmidt, ele não estava numa shortlist do scouting, numa equipa sombra?

Ele foi uma escolha do Benfica. O Benfica contratou-o e estávamos todos no mesmo barco.

Tenho de insistir e vou citar uma passagem do livro «Scouting – Tudo sobre a observação e análise de jogadores», escrito pelo Pedro e pelo João Ferreira. «Apesar de sabermos que poderá haver muitos fatores que façam com que determinado jogador não se adapte a uma nova realidade, o que não podemos é correr o risco de ele não se adaptar por questões meramente técnicas.» Foi por questões técnicas que o Jurásek não estava referenciado pelo scouting do Benfica?

O Jurásek estava referenciado pelo Benfica. Nós referenciamos imensos jogadores, milhares.

Diz «referenciado» no sentido de o conhecerem. Mas não era visto pelo scouting como um alvo?

Os alvos do Benfica têm muito a ver com aquilo que nos pedem. Temos uma panóplia enorme de jogadores referenciados e depois, em função do que nos pedem, nós damos soluções. Se o Jurásek era ou não [um alvo], acho que isso neste momento é pouco importante. Se o Jurásek é uma boa ou má contratação, o que garanto é que todas as contratações são avaliadas pelo Benfica e no fim de tudo é feita a análise ou o «enterro», como lhe costumo chamar, da contratação para se perceber o que é que aconteceu, porque é que correu mal, seja pela personalidade ou pelo que quer que seja. Tudo é assumido e analisado posteriormente e isso é, para mim, muito mais importante do que dizer se o jogador estava ou não referenciado pelo scouting ou se o treinador queria ou não. Isso são pormenores que servem para vender jornais. O importante é perceber: acertámos ou não, errámos ou não? E vamos analisar o porquê. O que os adeptos querem é que se acerte mais amanhã.

«Tanto Gyökeres como Jurásek estava referenciados pelo scouting do Benfica»

Ao longo desta época falou-se muito de jogadores contratados pelo Benfica que não tiveram sucesso, mas também se falou de jogadores que não foram contratados. Por exemplo, chegou a ser noticiado que Gyökeres estava referenciado pelo scouting do Benfica. Estava bem referenciado?

Tanto Gyökeres como o Jurásek estavam referenciados pelo scouting do Benfica e o presidente falou há bem pouco tempo sobre isso. Como disse, nós referenciamos muitos atletas. Depois, lá está: de acordo com aquilo que nos é pedido, se o perfil é um perfil de um avançado rápido, potente, de ataque à profundidade, de um jogador móvel que possa jogar nos corredores, o Gyökeres entra nesse perfil; se o perfil é diferente, já não podemos identificar o Gyökeres.

O jornal Record chegou a noticiar que foi observado pelo scouting do Benfica em pelo menos 30 jogos…

Isso acabou por ser público. Mas é importante explicar que quando se diz que um jogador é observado em 30 jogos, pode não se estar a querer dizer que vimos 30 jogos diferentes ou ao vivo. Vamos supor que somos oito pessoas a ver jogos: se cada um viu cinco jogos do Gyökeres, do Manuel, do António ou do João, estão lá 40 jogos. Mas podem ter sido vistos 12 ou 13 jogos diferentes. O facto de haver 40 relatórios de um jogador não quer dizer que se viram 40 jogos diferentes. Quer dizer que há 40 relatórios feitos de um jogador. Muitas das vezes, a opinião de scouts diferentes sobre o mesmo jogo é muito importante. Outras vezes vemos o jogo ao mesmo tempo, seja ao vivo ou em vídeo no Benfica Campus. Era muito normal: «O que é que tu viste do jogador? Pontos fortes? Pontos fracos? Ok, eu vi isto, isto e isto. Vamos agora ver em conjunto dois, três, quatro scouts e vais-me dizer onde é que viste esses pontos fortes e eu digo-te onde vi os meus. O interessante era chegarmos ao final com um processo robusto e fundamentado. Podemos ver muitos jogos de um jogador e, no fim, não tem interesse.

Mas isso não será mais a exceção à regra?

Nem sempre. A ideia é tentar ver muito. Às vezes há uma oportunidade de negócio de um jogador que está muito próximo de outro clube e temos de tomar uma decisão, o que nos obriga a ver muito sobre ele. Se eu olhasse agora, antes de ter saído, para aquilo que foi a última época e os jogadores com mais relatórios, uns constavam da equipa sombra e outros não. Casos práticos: um scout, dentro do seu trabalho diário, viu muitas vezes um jogador e sente que está a destacar-se, mas chega a um momento em que quer a opinião de um colega, ou porque gostou do jogador, ou porque está com algumas dúvidas. O colega vai ver também. Se cada um vir oito jogos, estão ali muitos relatórios. Temos de ter muito para chegar a uma conclusão.

Gyökeres estava na «equipa sombra» do scouting do Benfica?

Sim, o Gyökeres estava na equipa sombra.

O mesmo jornal que escreveu que ele foi observado em 30 jogos disse também que Roger Schmidt preferiu o Casper Tengstedt na altura. O que pode dizer-nos em relação a isso?

Que o Benfica contratou o Tengstedt e não o Gyökeres.

O Tengstedt, tal como o Gyökeres, estava referenciado?

Sim, sim.

E o scouting do Benfica viu 30 jogos do Tengstedt?

Não sei responder quantos jogos vimos, mas vimos muitos jogos dele. Era alguém que se destacava no Rosenborg.

E o Pedro, ex-colaborador do Benfica, não acha que o Gyökeres teria sido uma boa contratação para o Benfica?

O Pedro, enquanto head of recruitment do Nottingham, vai contratar o Tengstedt, o Gyökeres, o Manuel ou o António? Depende sempre do que me estão a pedir. E não podemos estar a perder tempo com o que já passou.

Mas foi pedido ao scouting um jogador com as características do Tengstedt?

Dentro da equipa sombra, eram sempre pedidas ao scouting características diferentes. E, depois, a dada altura, quando se avaliava avançados, como se avaliou naquele momento, foram identificados vários perfis e na altura da decisão o Benfica decidiu contratar o Casper Tengstedt.

«Sucesso de Gyökeres no Sporting? Não há transferes. O modelo de jogo do Sporting, do FC Porto, do Sp. Braga ou do V. Guimarães é igual ao do Benfica?»

Não acaba por ser frustrante olhar para o sucesso do vizinho do lado, sentindo que a história podia ter sido radicalmente diferente?

Vou dizer claramente: nós olhamos para toda a gente, mas não há transferes. O modelo de jogo do Sporting, do FC Porto, do Sp. Braga ou do V. Guimarães é igual ao do Benfica? A riqueza do scouting no profissional é eu poder estar ao lado de um elemento de outro clube, a ver o mesmo jogo e estarmos a olhar de forma diferente para o mesmo jogador. Porque eu estou a olhar para o que se quer no meu modelo de jogo e ele para o modelo de jogo da equipa dele. Pode ter transfer para ambos, para nenhum ou para apenas um. Não é fácil dizer se um jogador que estava no Benfica teria mais ou menos sucesso no Sporting. Ou que o Enzo, usando um grande exemplo, teria menos ou mais sucesso se estivesse no Sporting.

Por falar no Enzo Fernández, ele e também o Darwin foram duas das três vendas mais caras da história do Benfica. A outra é o João Félix e curiosamente o Pedro tem relação com as três. Eram jogadores que estavam altamente referenciados?

Sim. Nós somos obrigado a conhecer os jogadores todos. O que eu disse do João, posso dizer do Darwin e do Enzo. Mas o que nunca fizemos foi colocarmo-nos em bicos de pés e dizer: «Quando se apresentou o projeto desportivo ao João Félix, sabíamos que daqui a «xis» anos ele ia ser vendido por 126 milhões.» Mas também é preciso dar muito mérito naquele momento a Rui Costa, Luís Filipe Vieira e a Jorge Jesus por perceberem que o Darwin vinha de uma II Liga espanhola… E atenção que nós já o conhecíamos da época anterior, quando ele estava no Peñarol, mas não houve, se calhar, a certeza no clube se deveríamos investir, embora nós, no scouting, até gostássemos muito dele. Optou por perceber-se qual era o passo seguinte e ver se depois se justificava investir, mesmo que fosse por um valor alto, mas ele ia potenciar-se. Se pensarmos um bocadinho nisto, o Darwin é, se calhar, o único jogador avançado do Benfica nos últimos anos que faz mais do que uma época. E a primeira época não é assim tão boa. E curiosamente até explode com o mister Veríssimo. Aprendeu claramente muito com o mister Jorge Jesus, que apostava e investia muito no Darwin e deu-lhe muitas ferramentas para melhorar.

Quem olhava de fora, via muito potencial em Darwin, mas também lhe identificava lacunas no conhecimento do jogo. Esse é o caso em que o scout tem de olhar para o potencial futuro, quase como se estivesse a avaliar um jogador para a formação?

Tirando algumas exceções, para um jogador muito rápido e potente, como é o Darwin, não é fácil decidir tão bem como um jogador que tem mais tempo para o fazer. Isto tem muito a ver com tempo: quando estamos a conduzir um carro e a fazer uma manobra de estacionamento, se a fizermos mais rápido, não conseguimos estacionar tão bem como se a fizermos mais devagar, em que temos mais tempo para decidir e executar. E é um bocadinho isso nesse tipo de jogadores. São poucos os jogadores muito velozes e que decidem muito bem com a velocidade de um Darwin. O importante era, como em todos os jogadores, perceber: o Darwin tinha muitas virtudes e algumas lacunas. «Vamos então potenciar o nosso modelo e perceber que ele vai ser potenciado dentro do modelo de jogo. E vamos então trabalhar para que as virtudes sejam mais facilmente observáveis e escondendo um bocadinho as lacunas.» Os modelos de jogo também servem para esconder lacunas e potenciar virtudes dos jogadores. Esse foi um caso bem feito, tal como o do Enzo. Ele foi identificado e contratado, mas não podemos esquecer também que o mister Roger Schmidt recebeu-o e apostou nele. E os colegas também apostaram nele, identificando-lhe qualidade e personalidade para chegar e assumir-se. Tem de haver uma simbiose de muitas pessoas: da direção e das pessoas no Benfica que colocam dinheiro acreditando no que nós inicialmente escrevemos.

Porque é que entende que o Darwin explode com o Nélson Veríssimo e não mais cedo com o Jorge Jesus, que foi quem o recebeu no Benfica? Por causa de um modelo de jogo mais defensivo e que ia mais ao encontro das características do jogador, com mais espaço para as transições?

Também. Isso acontece num momento de Liga dos Campeões em que o Nélson adaptou o modelo de jogo às características que tinha dos jogadores e dos adversários que íamos encontrar. E isso fez com que o Darwin tivesse muito sucesso com muito espaço para atacar, usando a sua potência, explosão e velocidade.

Encaixaria num modelo de uma equipa mais de posse como é o caso do Benfica de Roger Schmidt?

Poderia encaixar se se criassem situações para ele exponenciar as suas mais-valias. Se eu acho que ele precisa de mais espaço? Acho que sim. Acho que é um jogador mais talhado para esses momentos de ataque à profundidade. Se a tomada de decisão não é a sua grande virtude, também acho que sim. Mas ele foi para um clube que vai ao encontro das suas características: o modelo de jogo do Klopp era um modelo de jogo em que o ataque à profundidade era importante.

O trabalho de um departamento de scouting de futebol profissional passa também por olhar para dentro? Por exemplo: o treinador querer um defesa ou um médio com determinadas características e identificarem em casa os jogadores que preencham esses requisitos?

Sim. Cabe ao scouting, ao departamento de formação, aos diretores e aos presidentes terem conhecimento do que existe em casa. Mas, respondendo ao scouting, coube e caberá sempre reconhecer aquilo que temos em casa e perceber que um determinado jogador pode ajudar. O scouting de futebol profissional tem de conhecer obrigatoriamente equipas da formação, até para compararmos quando estamos a ver jogadores no estrangeiro. Temos de ter um conhecimento grande das equipas a partir dos sub-17. E é ainda mais obrigatório termos um conhecimento muito grande do que temos em casa, com a vantagem de ainda conhecermos a personalidade do jogador, o ser humano.

Foi o que aconteceu com António Silva e João Neves, os casos mais recentes de sucesso de jovens vindos da formação? Perceberam que não era necessário irem ao mercado para preencherem um lugar?

Sim. Olhando para os dois casos, importa perceber que surgiu a oportunidade, havia espaço quer para o António, quer para o João, para poderem ser chamados aos treinos.

E o scouting tem influência nessas chamadas aos treinos, alertando para a existência de um determinado jogador da formação que entende estar pronto?

No momento do dia a dia de treino, não. Mas, quando se perspetiva a época seguinte e os atletas que podem treinar na pré-época, sim: aí, era-nos pedida a opinião. Mas claro que vamos dando inputs.

LEIA MAIS:

Parte I - «Detetávamos o jogador, falávamos com o pai e ele dizia que ia ligar ao Sporting»

Parte II - «Era obrigatório colocar pelo menos uma dúvida na cabeça dos pais do João Félix»

Parte III - «Futebol profissional? Pressão de não falhar existiu desde o dia em que entrei no Benfica»

Parte V - «Parece-me difícil o Nottingham contratar jogadores ao Benfica neste momento»