1. Zapruder no Camp Nou: o filme de um atentado

Há exatamente 30 anos, dia por dia, o melhor jogador do mundo não pressentiu a bala a chegar pelas costas. Sentiu apenas a colisão com a perna esquerda, abaixo do joelho. Depois, os pitons enterraram-se na relva e o pé rodou, fixo como uma estaca, enquanto o resto do corpo seguia em frente. Durante uma fração de segundo, o peso de Andoni Goikoetxea (cerca de 78 quilos, para 1,85 metros, no auge da forma) assentou no local do impacto, antes de libertar a presa. A pressão exercida, conjugada com a torção do pé preso na relva, foi suficiente para fraturar o tornozelo esquerdo de Diego Maradona, rompendo-lhe os ligamentos. A descrição de Julio Alberto, companheiro de equipa de «La Pelusa», foi menos clínica, mas não menos objetiva: «ouvi o grito, e o tornozelo a fazer crack!», limitou-se a contar, depois do jogo.



São dois segundos que parecem durar uma eternidade. A relva húmida do Camp Nou faz com que vítima e carrasco prossigam o movimento, deslizando em direções diferentes. Desequilibrado, como um avião sem trem, Maradona aterra bruscamente sobre o ombro esquerdo. Por momentos, dá a sensação de que vai levantar-se de novo. Mas consegue apenas erguer a cabeça e olhar para trás, como quem tenta anotar a matrícula do carro que acabou de atingi-lo. Há um segundo em que Maradona e Goikoetxea, presa e caçador, se fitam nos olhos, enquanto as leis da física os vão afastando. Depois vem a onda de dor, e a sensação estranha de ter qualquer coisa fora do sítio. Maradona já não vê mais nada. Rebola duas vezes sobe si mesmo, agarra a perna esquerda e imobiliza-se, numa bola de sofrimento e espanto.



2. Como tudo começou

Os dois segundos desta história começam dois anos antes, quando um jovem treinador de 31 anos, Javier Clemente, chegou ao Ath. Bilbao. A antiga potência, que dominava o futebol espanhol na década de 30, está em declínio. Com a carreira de jogador abruptamente interrompida por uma entrada brutal, Clemente, antigo médio do clube, quer a glória de regresso a San Mamés. Custe o que custar.

A «cantera» e o recrutamento dos melhores bascos são a base da identidade do clube, que Clemente reforça com sangue novo. Nomes como Zubizarreta, De La Fuente, Endica e Julio Salinas são promovidos à primeira equipa, ainda antes dos 20 anos. São enquadrados por homens mais experientes, como Urkiaga, Nuñez ou Goikoetxea. Clemente exige atitude acima de tudo. Em pouco tempo, San Mamés volta a ser uma fortaleza.

Em dezembro de 1981, o Barcelona visita a «catedral». Tem como maior estrela o alemão Bernd Schuster, criativo e temperamental. Aos 25 minutos, um drible curto, à entrada da área, custa-lhe uma entrada a varrer, de Goikoetxea. Schuster fica agarrado ao joelho e tem de sair de maca. Vai demorar seis meses a recuperar, falhando o Mundial 82. Há quem defenda que nunca mais voltou a ter a velocidade do «anjo loiro» que espantou a Europa no Euro-1980.



Em 1981/82 o Ath Bilbao acaba num animador quarto lugar. Na época seguinte, o misto de talento, juventude e dureza vale o título de campeão, o primeiro em 27 anos. Ironia: um ano depois de lesionar Schuster, no seu primeiro reencontro com o alemão, Goikoetxea marca o único golo na vitória do Ath. Bilbao no Camp Nou.

O alemão tem um feitio explosivo. Quando o Ath. Bilbao volta ao Camp Nou, como campeão, nesse 24 de setembro de 1983, Schuster quer acertar as contas, desportivamente e não só. A primeira parte da tarefa fica consumada com dois golos antes do intervalo e um banho de bola, orquestrado pelo dueto Schuster-Maradona.

A outra missão começa a desenhar-se no início da segunda parte, numa entrada dura de Schuster sobre Goikoetxea, retaliação pelo sucedido dois anos antes. O central, pouco habituado a apanhar, também não gosta de ser humilhado. Está furioso e, aos 58 minutos, vê uma camisola com o número dez nas costas a mudar de direção. Como um touro em plena faena, carrega às cegas, com os dois pés projetados no ar.

3. Consequências

Operado nessa noite, Maradona ficou quatro meses fora dos relvados. Quando voltou, já era tarde para travar a caminhada do Ath. Bilbao rumo ao bicampeonato. Já era tarde, também, para salvar a sua passagem de duas épocas pelo Barcelona, já minada pela longa ausência provocada por uma hepatite. No final dessa temporada, com a patada de Goikoetxea como argumento decisivo, Maradona trocou o Camp Nou por Nápoles, onde se tornou verdadeiramente imortal.

Ainda antes, Goikoetxea, Schuster e Maradona voltaram a cruzar-se, numa espécie de frente a frente ao pôr-do-sol, tradução futebolística para o final de «O Bom, o Mau e o Vilão». Foi a 5 de maio de 1984, o último jogo de Maradona pelo Barça. O Ath. Bilbao ganhou por 1-0, na final mais vergonhosa da história da Taça do Rei. Em pleno Bernabéu, um sururu antológico resumiu três anos de tensões e «mala sangre» entre as equipas.



Goikoetxea foi apenas punido com um cartão amarelo pelo lance do Camp Nou. A polémica prosseguiu nas semanas seguintes, com a federação espanhola, pressionada pelos «media», a castigar o basco com 18 jogos. Depois reduziu-lhe a pena para 12, finalmente acabou por puni-lo com nove. Maradona reagiu ao processo com humor negro: «Desde que não me suspendam a mim, está tudo bem».

Goikoetxea ao Maisfutebol, no 50º aniversário de Maradona: «Zoroniak ao melhor do Mundo»

A brutalidade do lance correu mundo, proeza difícil, numa altura em que o futebol não tinha tanta exposição mediática e os jogos não eram transmitidos para todo o lado. O lance desencadeou um debate sobre a permissividade dos árbitros, em Espanha e não só. A necessidade de proteger os grandes talentos começou a ser defendida em público, por treinadores como Menotti, não por acaso o responsável por esse Barcelona.

O reforço da cobertura televisiva dos jogos, a globalização e o aumento dos «replays» foram mudando as mentalidades, pouco a pouco. Mas só depois de outra entrada brutal, ao tornozelo, acabar com a carreira de Van Basten, na década de 90, a FIFA uniformizou de vez a proibição total das entradas por detrás.

Ao contrário de Schuster, o anjo que perdeu parte das asas, Maradona voltou melhor do que antes, dominando o resto da década de 80. À sua maneira, Goikoetxea recuperou alguma respeitabilidade, somando 39 jogos pela seleção espanhola e uma presença no Mundial 86, dominado dos pés à cabeça pelo génio de Maradona.

Na década de 90, apadrinhado por Javier Clemente, Andoni Goikoetxea tornou-se técnico adjunto da seleção e responsável pelas equipas de sub-20 e sub-21, com resultados interessantes e um futebol que nada tinha a ver com a sua imagem em campo. Mas foi essa que ficou para a lenda, colando-se ao seu nome de forma tão incontornável como a alcunha, definitiva, de «Carniceiro de Bilbao».