Rui Miguel Tovar está no Maisfutebol com a rubrica LOAD "" ENTER. Para ler todas as semanas e saborear conversas por vezes improváveis com as principais figuras do futebol. Já sabe, basta escrever LOAD "" ENTER para entrar neste mundo maravilhoso de Rui Miguel Tovar. 

Destro ou canhoto? Boa pergunta. Ninguém se atreve a dizer. Quer dizer, estamos a falar do pé, certo? Se for calcanhar, ele é destro. Ele, quem? Ora essa. Continuamos a aproveitar a CAN para entrevistar estrelas africanas.

E, já agora, Bolas de Ouro.

Uma semana depois do maliano Salif Keita, é a vez de Rabah Madjer. Autor de dois golos icónicos com o calcanhar. Ambos com o direito, lá está. Ambos no mesmo ano, separados por três meses. Um é aquele ao Bayern, em Viena. Outro é ao Belenenses, nas Antas. Ambos na baliza encostada à esquerda na televisão. De calcanhar, o assunto está arrumado.

E o pé? Repetimo-nos, boa pergunta. Ninguém se atreve a dizer. E a mão? Essa é fácil: destro. Porquê? Há um ano, mais coisa menos coisa, estamos no Hotel Marriott, ali perto do Estádio Universitário, e subimos ao 14.º andar.

Batemos à porta e aparece-nos o seleccionador argelino Madjer, ligeiramente ensonado, completamente descalço. Estende-nos a mão direita. Mistério resolvido.

Boa tarde. Rabah Madjer?
É o próprio. E tu?

Rui Miguel Tovar, jornalista português.
Estás bom, amigo? [spoiler: Madjer é bem capaz de ser a pessoa com a palavra ‘amigo’ mais solta na ponta de língua]

Tudo bem, obrigado. Podemos falar uns minutos?
À vontade, amigo. Diz, é sobre o quê?

Tudo. A vida do Madjer.
Amigo, estás perdido. Ahahahahah.

Vou ser rápido, prometo.
À vontade [outro spoiler, outra palavra: à vontade]

Onde é que começou a jogar?
Nas ruas de Hussein Day, claro. Com os meus amigos, com o meu irmão Mohamed. Desde muito cedo, a bola tornou-se o objecto mais importante da minha vida. Via claramente o futebol como uma profissão de futuro.

Porquê?
Amigo, adorava jogar. Era o dia todo. Só parava quando me diziam que ia dar um jogo pela televisão. Cresci a ver o Ajax do Cruijff. Que jogador, que senhor. Muito simpático, sabes?

Nem ideia. Conheceu-o?
Ele quis contratar-me para o Ajax.

Ah sim?
Em 1987, 1988. Por aí. O acordo com o Porto até se fez, durante a Supertaça Europeia, só que saiu para os jornais antes de tempo e, pronto, foi tudo ao ar.

O Madjer também teve uma experiência parecida com o Inter, certo?
Aí foi uma lesão, ligeiramente diferente, amigo. Foi no Verão de 1988. Aterrei no aeroporto de Milão e falei com a imprensa. O treinador do Inter era o Trapattoni, que queria que eu fosse o maestro. Fiz os exames e os médicos detetaram uma lesão. Voltei ao Porto.

E estava mesmo lesionado?
Verdade. O Inter foi impecável comigo e, depois, contratou o argentino Ramón Díaz. Sabes uma coisa engraçada? Eles foram campeões italianos nessa época 1988-89.

E o Madjer, no Porto?
É uma história bela, belíssima.

Lembra-se do primeiro dia?
Claro que sim. Quem julgas que sou? Lembro-me desses detalhes todos. Foi um momento marcante, o de viragem. Estava a jogar na 2.ª divisão francesa [Racing Paris] e, de repente, entrei num dos maiores clubes de Portugal. Três anos depois, fomos campeões europeus e mundiais. Que aventura. Bela, belíssima.

Chegou sozinho ao Porto?
Cheguei com o Lucídio Ribeiro, um empresário português que vtrabalhava muito o mercado francófono [é ele quem, por exemplo, transfere Ricky do Metz para o Benfica em 1988 ou faz a ligação de Artur Jorge como selecionador dos Camarões]. Estava um dia cinzento, tenho ideia. Fui para o hotel e daí para o Estádio das Antas.

Jogo ou apresentação?
Jogo de campeonato, com o Penafiel. O Porto ganhou [3-1, golos de Semedo, Gomes e João Pinto]. Conheci toda a gente e a química foi imediata: com o presidente Pinto da Costa, com o médico, com os jogadores.

Tais como?
Tantos, tantos. Lima Pereira, André, Frasco, Gomes, Futre, Eduardo Luís, Jaime Magalhães, João Pinto, Juary. Tudo gente cinco estrelas.

E Artur Jorge?
Também, também. Grande senhor do futebol.

Tiveram os vossos problemas.
Claro que sim, normal. Problemas com solução, amigo. Por muito bom que seja o espírito de uma equipa de futebol, e o FC Porto era como se fosse uma família, há sempre alguém às turras com alguém. Ou é o presidente com o treinador ou é o jogador com o treinador. São coisas que vão e vêm. E passam, sabes? Quando havia esses stresses, nada melhor que ir almoçar ou jantar.

Como assim? Isso não é um ritual diário?
Ahahahah. Apanhaste-me, amigo. Digo almoçar ou jantar com a malta amiga, com o resto do plantel. Nesses casos de stress, organizávamos excursões à Póvoa de Varzim para comer e relaxar. O André era o líder espiritual desses convívios. Era também o mais divertido do plantel, sempre bem-disposto e a contar anedotas. Como o Lima Pereira, outro capitão dentro e fora do campo e sempre pronto a comandar as suas tropas. Ahahah. Como o Futre, jovem e irreverente como só ele sabia. Resumindo: se houvesse algum stress comigo, eles resolver-me-iam a situação num abrir e fechar de olhos. Percebes, amigo?

Claro. E porquê Póvoa de Varzim?
Invenções do André, ahahah. Amigo, havia lá um restaurante fantástico. Não me perguntes o nome, disso não me lembro.

E lembra-se de como entra na equipa?
Muito bem. Todo esse trajeto é inesquecível. O primeiro jogo foi no Estádio da Luz, com o Benfica. Era a festa de inauguração do Terceiro Anel. Empatámos 0-0. A estreia oficial foi também em Lisboa, no Restelo. Ganhámos 3-2 ao Belenenses e eu fiz duas assistências para o Gomes. Depois, recebemos o Sporting e vencemos 2-1. Até que veio o tal jogo que me desbloqueou, no Bessa. Foi 2-1 para nós e eu marquei os dois golos, os da reviravolta [1-0 de Casaca]. A partir daí, ninguém mais me agarrou. Ahahahah.

Nem na Póvoa de Varzim.
Ahahahah. Os almoços e os jantares continuaram, logicamente. Era a nossa imagem de marca, amizade e confraternização. Como nos bons velhos tempos de criança, em que todos seguimos o mesmo sonho.

Como era nos seus tempos no futebol de rua?
À baliza.

Hããã?
Amigo, jogava à baliza. E era bom. Mas depois acordei e fui para a frente, ahahahah. Ao lado do meu irmão.

Imagino a dupla.
Ele era canhoto, muito dotado tecnicamente.

E o Madjer?
Gostava de fintar e marcar golos.

Nãããão, perguntava se também era canhoto?
Sabes uma coisa, amigo? Um dia, o Jorge Valdano apanhou-me em Amesterdão antes do Ajax-Porto e queria saber se era destro ou canhoto para falar na rádio – ele estava a trabalhar para uma rádio espanhola.

Disse-lhe?
Disse-lhe “Não te vou dizer, é confidencial”. Ahahahah. Tanto eu como o meu irmão éramos dotados, mas só eu é que segui a carreira de futebolista.

Com que idade?
Aos 12 anos, completamente sozinho. Vi que o Hussein estava a testar jogadores e fui tentar a minha sorte. Calcei uns ténis, vesti uma t-shirt mais uns calções e aventurei-me. Entrei na equipa. Foi a minha única experiência numa equipa argelina.

E foi bem sucedido. Ganhou uma Taça, certo?
Verdade, amigo: 2-1 ao Tizi. O golo da vitória foi meu.

De calcanhar?
Ahahahah, não. Esse ficou reservado para mais tarde, em Viena.

Como é que recorda esse golo?
Como um momento histórico. Para mim, para o Porto e para a própria Taça dos Campeões. Nunca ninguém tinha feito um golo daquela forma.

Como é que aconteceu?
Era a única maneira de atirar à baliza. Estava demasiado adiantado em relação ao ataque. Se não me engano, o Juary entrou na área e a bola caiu ali naquela zona. Já estava meio desequilibrado e resolvi meter o calcanhar. É uma coisa do momento, zero de planeamento. Saí-me bem, foi um golo bonito.

E ao Belenenses?
Olha, esse é mais bonito ainda. Digo eu. É uma jogada do Jaime Magalhães, eu recebo com o pé direito e dou-lhe com o calcanhar. Grande momento.

Foi o ano do calcanhar.
Ahahahah. Foi mesmo.

Tem golos mais bonitos como esse?
Tenho um que não me sai da memória, durante a última fase de qualificação africana para o Mundial-82. Era um play-off a duas mãos, com a Nigéria. Ganhámos lá por 2-1 e agora jogávamos em casa. Estava 1-1 a cinco minutos do fim. Há uma bola que vem para o lado direito do campo, eu domino-a com o pé esquerdo. Avanço também com o pé esquerdo. E driblo com o pé esquerdo, faço um pequeno chapéu a um defesa. Vejo o guarda-redes, enquadro-me com a baliza e atiro com o pé esquerdo. È um golo lindo, lindo. Foi o 2-1 final, foi uma festa imensa.

A Argélia não ganhou uma final da Taça Africana das Nações à Nigéria, em 1990?
Exactamente, 1-0. O capitão era eu. Foi outro dia glorioso. Comecei a jogar na selecção aos 16 anos e ver o sonho de campeão africano cumprido é uma alegria imensa. Aliás, é o único título continental da Argélia. No primeiro jogo dessa CAN, marquei dois golos. Sabes a quem?

Nem ideia.
Nigéria.

O Madjer tinha queda para a Nigéria.
Ahahahah. Boa equipa, hein? Já lá jogava o Okocha, mas nós jogávamos em casa e isso dá sempre força. Sobre aquele meu golo com o pé esquerdo, a alegria também foi imensa. Afinal, aquela geração qualificou-se para o Mundial-82.

Aquele em que a Argélia ganha à RFA?
Exactamente, amigo. Ganhámos aos campeões europeus por 2-1. Marquei eu e o Belloumi.

O pior foi depois, não é verdade
Nem me digas nada. Aquele último jogo entre RFA e Áustria foi uma loucura. A RFA só tinha de ganhar, marcou aos 10 minutos pelo Hrubesch e depois limitaram-se a trocar a bola. Estava a ver o jogo e nem queria acreditar. Eu e toda a gente. Até os jornalistas. Até os adeptos. O jogo foi em Vigo e os adeptos do Celta puxaram pela Argélia durante toda a segunda parte. Mas, amigo, serviu de emenda: a partir daí, a última jornada da fase de grupos passou a jogar-se à mesma hora e ao mesmo dia.

...
Mas, olha, esse Mundial tem outra particularidade.

Então?
Fizemos alguns jogos particulares antes de chegar a Espanha.

Como todos, certo?
Os nossos foram especiais. Um com o Real Madrid, outro com o Benfica.

A sério, o Benfica?
Verdade, ganhámos 1-0 em Argel. Era a equipa de Bento, Carlos Manuel, Veloso.

Golo teu?
Não, do Yahi. Ao Real Madrid, outra vitória: 2-1. Marquei um. Como vês, a Argélia estava em forma.

Bem vejo.
Era uma geração bem boa. Também fomos ao Mundial-86, no México.

A seguir, é o ano do calcanhar.
1987 vai ficar na história.

Viena e Tóquio.
Claaaaro. Tóquio é qualquer coisa de especial. Fui eleito o melhor em campo e ganhei um carro como prémio. Nunca me deu um problema, sabes? Os japoneses são mesmo fiáveis.

Os carros, só. Porque o tempo, o que foi aquilo?
Ahahahah, verdade, amigo. Que dia. Inesquecível, hã? Na véspera, céu nublado. Nunca ninguém pensou naquilo. No dia do jogo, acordámos e era neve, neve, neve e mais neve. Neve por todo o lado. E não parava de nevar. Impressionante. Estávamos todos a tremer de frio, ahahahah. Nunca tinha jogado na neve. Nunca.

Dá-se bem, aquele chapéu é um portento.
Saiu-me bem, sabes? Vi o guarda-redes adiantado e atirei o mais forte que pude. Na verdade, já nem tinha muitas forças. O campo estava impraticável, não dava para praticar o meu futebol.

Qual?
O do drible, o de fazer só mais uma coisa para satisfazer a minha curiosidade. E a do público. Adorava inventar truques novos. Sempre foi a minha diversão num campo de futebol. Talvez por isso tenha tido sorte ao longo da carreira. Sempre me dei bem na seleção e nos clubes. Mesmo aqueles que não cheguei a representar, como Ajax, Inter e Bayern.

Bayern?
Também assinei um pré-contrato com ele, na mesma altura do Inter, só que o negócio não se fez.

Isso era engraçado, Madjer no Bayern.
Ahahahah, entendo-te.

Jogou no Valencia.
Pouco, amigo. Comecei bem, numa altura em que o Valencia não se comparava a Real Madrid e Barcelona. Depois lesionei-me e fiquei parado quatro meses. Aliás, foi essa lesão que foi detectada pelos médicos do Inter.

Mas ainda jogou no Porto.
Dois anos.

E depois Qatar, porquê?
Recebi propostas de clubes portugueses, sabes bem quais, certo?

Imagino.
Não podia jogar nesses clubes, não me sentiria nada bem. Então fui acabar a carreira num outro país e o Qatar pareceu-me bem.

Algum arrependimento?
Amigo, nenhum. Diverti-me sempre, como se fosse aquele sonho enquanto criança do futebol de rua. Ganhei muito, joguei na seleção, joguei na Europa, joguei dois Mundiais. Fiz tudo o que queria. É aquilo que eu digo aos jogadores de agora: joguei muito porque me cuidei. Nunca fui de discotecas nem de beber álcool. Concentrei-me no futebol e tive ajuda divina para alcançar muitos objectivos.