O primeiro encontro de Johan Cruijff com o futebol português aconteceu debaixo de neve. 30 centímetros de altura, coisa pouco vista, a tal ponto que o clima esteve mesmo para colocar em risco o jogo da primeira mão dos quartos-de-final da Taça dos Campeões Europeus de 1968/69.

O suposto relvado do Olímpico de Amesterdão estava impraticável, mas naquele dia 12 de fevereiro as equipas foram a jogo, entrando num terreno circundado de rolos de neve que se amontoavam em torno das quatro linhas.

O manto branco que se abateu sobre a Holanda acabou por prejudicar o carrossel do Ajax e o Benfica de Eusébio venceu por 1-3. Num dos golos, José Torres festejou como uma criança, atirando ao ar um bloco de gelo por detrás da baliza.

A eliminatória parecia tão bem encaminhada que a comitiva benfiquista mal reparou no miúdo de 20 anos que já despontava no onze de Rinus Michels.

«Era um miúdo, um ano mais novo do que eu… Eu tinha 22 anos e ele 21, a diferença é que ele era muito melhor, por isso é que mais tarde viria a ser três vezes eleito como o melhor jogador do mundo», afirma Toni, em conversa com o Maisfutebol, recordando de seguida um episódio da segunda mão, uma semana depois:

«Antes do segundo jogo, um canal de televisão holandês foi ao local do nosso estágio e perguntou a um jogador do Benfica, que eu prefiro não nomear [segundo o livro «Sport Europa e Benfica», do Maisfutebol, terá sido Jacinto], o que achava daquele rapaz do Ajax. E ele responde ‘Cruijff? Mas qual Cruijff? Vencemos por 1-3 na Holanda!’ Naquele primeiro jogo, no meio da neve, o Cruijff andou meio escondido… Na segunda mão, na Luz, ele partiu a louça toda: marcou dois golos, eles ganharam por 1-3 e levaram a eliminatória para o jogo de desempate.»

Tudo viria a decidir-se num jogo de desempate, a 5 de março, no Estádio Colombes (Yves-du-Manoir), em Paris: a decisão arrastou-se até ao prolongamento, mas aí voltou a aparecer Cruijff, que marcou, antes de um bis do sueco Danielsson para sentenciar o 3-0.

Tal como Toni, José Augusto participou nessa eliminatória (até marcou na primeira mão), e recorda o momento em que teve a «prova cabal de que do outro lado estava um fora de série que levou a equipa às costas».

Este desfecho era em parte o preço por não ter havido especiais cuidados na marcação.

«Naquela altura não havia dessas coisas. Sabíamos que estava ali um talento e havia sempre essa indicação por parte do treinador [Otto Glória], mas nada de mais. Jogava-se o jogo pelo jogo, era tudo virado para o ataque. A ideia era que ganhava quem marcasse mais e não quem sofresse menos. Portanto, o Cruijff era problema de quem o tinha de marcar e nada mais», conta ao Maisfutebol José Augusto.

Cruijff já era um prodígio e não demoraria a tornar-se no vértice do futebol total de Rinus Michels, no Ajax tricampeão europeu entre 1971 e 1973, e na seleção holandesa.

Em abril de 1972, na época da revalidação do título europeu, o Ajax de Cruijff (já com Kovacs a treinador) voltou a encontrar o Benfica, e Toni, e a apurar-se para a segunda final da Taça dos Campeões Europeus (vitória por 1-0 em Amesterdão e nulo em Lisboa).

Cinco anos depois, Cruijff voltaria a cruzar-se com uma equipa portuguesa na Europa do futebol: o Belenenses vendeu cara a primeira eliminatória da Taça UEFA de 1976/77 ao empatar no Restelo a duas bolas, num jogo em que o astro holandês não jogou, perdendo por 3-2 em Camp Nou.

«Rei» para Toni; «ídolo» para João Alves

Nessa altura, Cruijff cruzava-se mais frequentemente nos relvados do campeonato espanhol com João Alves.

Na memória da sua relação de «amizade e respeito com o ídolo de uma geração», o «Luvas Pretas» recorda os triunfos pelo Salamanca e a sua distinção como melhor jogador estrangeiro na Liga Espanhola de 1976/77, onde atuava Cruijff: «Que orgulho!»

Um par de episódios vêm à memória nos quatro confrontos entre o Salamanca de Alves e o Barça de Cruijff – entre 1976 e 1978.

«Naquela primeira época, o Cruijff estava a jogar como líbero no Barcelona. As marcações eram duras e o Rinus Michels [que tal como o craque havia trocado o Ajax pelos catalães] inventou essa estratégia com três defesas e ele a ficar mais livre e a aparecer de trás. Mas aquilo não deu muito resultado e a prova é que o Atlético de Madrid foi campeão nesse ano», lembra ao Maisfutebol João Alves, que sentiu nas pernas a dureza das marcações nesse primeiro embate com o seu ídolo, quando teve de ser substituído aos 24 minutos num jogo que terminaria com derrota do Salamanca 4-1 no Camp Nou. O carrasco foi outro holandês…

«Sofri um tackle do Neeskens que me ia partindo a perna. Tive uma lesão na tibiotársica que durou uns tempos a debelar», lembra Alves, que viria a ser protagonista ao marcar nas duas vitórias em casa do Salamanca sobre o Barça (2-0 e 1-0) nessas duas épocas.

O reencontro com Cruijff aconteceria em 1979, com Alves já no Paris Saint-Germain e de facto já com a perna partida a dar um pontapé de saída, de muletas, no Parque dos Príncipes num jogo particular dos franceses com os Los Angeles Aztecs de Cruijff, mas não ficaria por aí a ligação entre ambos.

«Depois de terminar a carreira no futebol, já em finais dos anos 80, tive uma empresa de representação de marcas desportivas e mantivemos contacto pela via dos negócios, porque o Cruijff tinha uma marca própria que queria comercializar também em Portugal. Além disso, mantivemos contacto e, já como treinador, tinha a ideia de fazer estágios com ele no Ajax e no Barcelona. Tínhamos uma relação muito boa e a admiração era mútua, sobretudo da minha parte. Admirava-o muito também como treinador, por ter transformado o Barcelona naquela máquina de jogar futebol», conta João Alves, que viu em Cruijff um líder: «Era um fora de série dentro de campo, mas também uma pessoa muito vertical, corretíssimo como adversário.»

Não era um príncipe, era um rei, na definição de Toni:

«Como treinador, ele tem a paternidade deste Barcelona, porque soube adaptar toda a conceção e compreensão que tinha do jogo deste os tempos de futebolista. Aí, recordo-me dele pelo drible estonteante, pelas mudanças de velocidade, que deixavam qualquer um para trás, pela visão de jogo, pelo último passe, pela finalização… Era um rei, porque fazia coisas que mais nenhum fazia. Era um génio. Os génios não morrem.»