António Pacheco tinha 21 anos quando jogou a primeira de duas finais da Taça dos Campeões Europeus, logo na época de estreia pelo Benfica. «Em maio de 86 estou no Torralta a lutar para não descer à III Divisão; em maio de 88 jogo pelo Benfica a final da Taça dos Campeões Europeus. De doidos, não?», recordava ao Maisfutebol o antigo extremo esquerdo cujo percurso ficaria marcado para sempre pela saída da Luz no verão quente de 1993.

Além do talento, quem conviveu com ele recorda o companheirismo, o humor e a irreverência do antigo internacional português que morreu nesta quarta-feira aos 57 anos, uma semana depois de sofrer um paragem cardíaca quando jogava bowling com amigos.

«Era atrevido, esperto, divertido. Era um extraordinário jogador, toda a gente sabe. Recordar o Pacheco é recordar uma boa pessoa, um bom atleta. Sempre amigo, com piada, sempre com um humor muito castiço, muito próprio.» As palavras são de Vítor Paneira, que partilhou muitos anos de balneário na Luz com Pacheco e fala ao Maisfutebol ainda, como muitos dos seus antigos companheiros, sob o choque da sua partida precoce: «Estamos todos um bocadinho ainda abananados. Era uma pessoa nova, com muitos anos pela frente, com os filhos que ele adorava. Estas palavras no fundo são palavras de circunstância, não o podem trazer de volta. Mas as memórias são boas, é importante recordar isso.»

As primeiras memórias de Pacheco estão no Algarve. Nascido em Portimão a 1 de dezembro de 1966, foi no Torralta que fez boa parte da formação e foi lá que chegou a sénior, antes de se mudar para o Portimonense. Bastou uma temporada para o levar às seleções jovens, onde deu nas vistas no verão de 1987, no Torneio de Toulon, e para lhe abrir a porta a voos mais altos.

Da praia para a Luz, num «Ferrari preto, com tejadilho verde»

Pacheco divertia-se a contar com pormenores rocambolescos a história da sua transferência para a Luz. «Já estava de férias, mas sabia que havia clubes interessados em mim. Tinha 20 anos, ia todos os dias para a praia e dei o número de um restaurante de amigos que frequentava, também na praia, a um dirigente do Benfica», recordou em 2018 ao Maisfutebol: «Avisei no restaurante que a qualquer momento chegaria uma chamada importante. E ela chegou. Era da Luz, perguntaram-me ‘queres vir?’ Era impossível recusar. Lá veio o meu amigo a correr pela areia fora. Fui atender o telefone e dias depois o juiz Adriano Afonso, dirigente do Benfica, veio ter comigo ao Algarve.»

E então, no dia marcado para começar a época, meteu-se no comboio, rumo à Luz. «Um amigo apanhou-me no Barreiro e levou-me até Lisboa. Fiquei na zona da Graça e apanhei um táxi para a Luz. Digo sempre que me apresentei ao serviço no meu Ferrari preto, de tejadilho verde», ria-se Pacheco: «O taxista parou à porta de casa, disse-lhe ‘é para o Estádio da Luz, se faz favor’ e ele, mais animado do que eu, diz ‘hoje é a apresentação da equipa, não é?’. E eu, ‘é, é’. Eu não sabia o que lhe dizer, se lhe devia dizer que era jogador do Benfica ou não. E lá me deixou no meio da multidão e eu, jogador do Benfica, a passar no meio de todos, com o meu saquito. Ainda tive de dizer a um segurança que ia treinar, porque ele não me queria deixar passar. Eram os anos 80.»

O miúdo «irreverente» que jogou duas finais da Taça dos Campeões

Começavam aí seis anos de águia ao peito para Pacheco. Embalado no seu pé esquerdo, construiu uma bonita história na Luz, afirmando-se logo na primeira época, apesar de ter começado na sombra do então regressado Chalana. «Eu era um jovem irrequieto», recordou numa entrevista à SportTV: «Irreverente, audacioso durante o jogo, irresponsável também. Talvez isso me desse mais qualquer coisa em relação aos outros.»

Em maio de 1988 foi titular em Estugarda e bateu um dos penáltis na final da Taça dos Campeões Europeus, perdida para o PSV Eindhoven. Paneira chegou à Luz na época seguinte e recorda como Pacheco o ajudou na integração. «Conhecemo-nos na seleção de esperanças, no Torneio de Toulon. Os dois da mesma idade, somos do mesmo ano. Ele nesse ano foi para o Benfica, eu só fui no ano a seguir. Quando lá cheguei o Pacheco já era um jogador com estatuto. Tinha feito uma época extraordinária, com uma final da Liga dos Campeões pelo meio, e prontificou-se logo, disse que se eu precisasse de alguma coisa estaria à disposição», conta o agora treinador do Varzim.

Pacheco também recordou várias vezes como questionava e debatia as opções dos treinadores e Paneira evoca igualmente essa faceta do antigo companheiro. «Era atrevido, era irreverente. Era uma pessoa com personalidade, o que é bom. Tinha sempre opinião sobre os assuntos que lhe diziam respeito, sobre a equipa», diz Paneira, acrescentando que Pacheco tinha, independentemente disso, «bom relacionamento com toda a gente»: «Atrevido, com humor, brincalhão, fazia um excelente grupo também. Apanhámos muito bons grupos nessa fase.»

Pacheco fez mais de duas centenas de jogos pelo Benfica, marcou 48 golos, venceu dois campeonatos nacionais e duas Taças de Portugal e ainda estaria em mais uma final da Taça dos Campeões europeus. Dois anos depois de Estugarda, voltou a ser titular em Viena, saindo a menos de meia hora do fim, pouco antes de Frank Rijkaard marcar o golo que deu a vitória ao Milan. «Acabámos por jogar os dois nessa final. São boas recordações. Ganhámos títulos e tivemos grandes jogos no Benfica. Houve ali um caminho que percorremos quase de mão dada», lembra Paneira.

A saída da Luz no verão quente de 1993

O percurso de Pacheco no Benfica chegou ao fim no verão quente de 1993, quando foi o primeiro a enviar o fax a pedir a rescisão. Seguiu-se Paulo Sousa e João Vieira Pinto esteve muito perto de rumar também ao Sporting, mas acabou por ficar. Pacheco falou várias vezes sobre essa decisão, quando sentiu que perdia espaço na Luz e quando o clube vivia uma fase conturbada. «Tenho a perfeita consciência daquilo que fiz», disse à SportTV: «Falou-se muito na questão dos ordenados em atraso, e realmente houve, mas não era por causa de ordenados em atraso, pelo menos no meu caso. Eu não tenho nada a ver com o caso do Paulo Sousa nem do João Pinto, decidi pela minha cabeça. Porque perdeu-se a base, perdeu-se o respeito, perdeu-se a mística, uma série de coisas que o Benfica nunca pode perder.»

«Foi um período difícil da minha vida. Virei seis milhões de pessoas contra mim», recordava, ele que se tornou alvo da ira benfiquista. Teve o carro vandalizado, ouviu e leu insultos inscritos em paredes e muros.

Paneira recorda esses tempos. «Foi um período difícil para todos, naquela altura estávamos todos de alguma forma a ser atacados», diz: «Foi uma opção dele, sair, seguir a vida dele.»

O Sporting e um final «traumatizante»

No Sporting, Pacheco começou como opção regular, mas quando Carlos Queiroz sucedeu a Bobby Robson foi perdendo espaço. Não escondeu que havia um «conflito pessoal» com o treinador, que como selecionador também lhe tinha dado poucas oportunidades. Pacheco estreou-se na seleção A em fevereiro de 1989, num período que coincidiu com a afirmação de Paulo Futre e com Juca como selecionador, e fez apenas seis jogos com a camisola das quinas, o último em setembro de 1991.

Aos 32 jogos pelo Sporting em 1993/94, entre eles a célebre vitória do Benfica por 6-3 em Alvalade, quando começou no banco e entrou ao intervalo para render Paulo Torres, seguiram-se apenas três partidas na temporada seguinte. «Na minha segunda época no Sporting joguei 40 minutos. Essa época foi tão traumatizante que de alguma forma me desanimou», recordava Pacheco. Saiu do Sporting e não voltou ao nível dos seus melhores tempos nas passagens por Belenenses, Reggiana, Santa Clara, Estoril e Atlético: «Sair do Benfica foi uma má opção de carreira. Basta ver o meu percurso no Benfica e, depois, no Sporting.»

A reconciliação com a «família» do Benfica

Terminada a carreira, concentrou-se nos negócios, com breves experiências como treinador no Atlético e no Portimonense, enquanto assumia a gestão de um bar na marina de Lagos, onde tinha visitas frequentes de antigos companheiros. «Quando ia ao Algarve passava lá no bar dele. Tínhamos uma relação muito boa, como ele tinha com toda a gente», recorda Paneira.

Pacheco viveu muito tempo com a mágoa da rejeição dos adeptos do Benfica. Em 2018, «fez as pazes» consigo próprio, como disse quando participou numa campanha do clube para angariação de sócios. No filme produzido pelo Benfica, ele chega ao estádio e é recebido por Rui Costa e vários antigos companheiros.

«Eu participei nesse vídeo também, porque eramos amigos e era o regresso do Pacheco à sua casa», recorda Paneira: «Havia ali uma parte de adeptos que estava muito sentida com a saída dele. Criam-se ali algumas barreiras e acho que esse vídeo foi importante para recebermos o Pacheco de volta à sua casa mãe. Teve um grande impacto, naturalmente, no meio benfiquista. Acho que foi importante, foi bom.»