O Brasil vai acolher o Mundial-2014. A menos de meio ano do arranque da prova, tudo faria supor que o clima dominante nos estádios fosse de festa.

Mas não é isso que tem acontecido. A realidade, nua e crua, é que o Brasil lidera uma lista negra: é o país com mais mortos nos estádios de futebol (seguem-se Argentina e Itália).

2013 foi um ano sangrento nos estádios brasileiros, com 30 mortes decorrentes de confrontos.

Este saldo negro coloca o número de vítimas mortais nos recintos de futebol no Brasil nos últimos 25 anos muito perto das duas centenas.

No ano passado, o sinal de alarme já tinha sido dado, com os 23 mortos ocorridos. Entre 1999 e 2008 houve 42 mortes. A tendência de agravamento parece evidente.

Os distúrbios entre claques têm sido cada vez mais violentos e a utilização armas de fogo explicam a ocorrência de vítimas mortais. Mais de metade das mortes ocorridas nos últimos 25 anos decorreram de disparos de armas de fogo; cerca de meia centena por agressões e o resto por facadas, atropelamentos ou bombas.

Outro dado especialmente preocupante: perto de dois terços das mortes nos últimos 25 anos nos estádios brasileiros foram de jovens até aos 30 anos.

Estes números são tão assustadores que a primeira pergunta a coloca é mesmo: porquê?

«Cartão vermelho» aos adeptos violentos

Na sequência dos desacatos no Atlético Paranaense-Vasco, ocorridos no Arena Joinville a 9 de dezembro passado, em partida que ditou a descida do Vasco da Gama à Série B, as autoridades brasileiras abriram uma operação especial, na qual participaram as polícias dos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio de Janeiro.

Com o sugestivo nome de «Cartão vermelho», a operação tinha um objetivo claro: dar um sinal de «tolerância zero» das autoridades à violência nos estádios brasileiros, a menos de meio ano do Mundial-2014.

Bastaram 12 dias para que se fizessem 20 detenções de adeptos envolvidos nas agressões (sendo 11 da claque dos «Fanáticos», do At. Paranaense, e oito do Vasco da Gama), acusados de associação criminosa, prática ou incitação à violência e danos ao património público. Entre os detidos está até um antigo vereador de Curitiba, Juliano Borghetti, que foi identificado nos confrontos que chocaram o mundo no Arena Joinville.

A polícia do Paraná apreendeu ainda vários objetos pertencentes à claque dos «Fanáticos», incluindo roupas utilizadas pelos alegados agressores e um computador.

Bom Senso pede... mais do que isso

O Bom Senso FC, movimento que reúne muitos jogadores que atuam no Brasil, e que reivindica melhores condições laborais para os futebolistas profissionais, tomou posição pública muito dura, depois do que aconteceu no Arena Joinville: «Quando surgiu o Bom Senso, a gente imaginava fazer da melhor maneira possível para todos, principalmente para o torcedor. Fiquei sabendo agora o que aconteceu. Isso me deixa bastante chateado. O Bom Senso é partidário das coisas boas», comentou, ainda a quente, o médio Alex, do Coritiba, um dos principais líderes do movimento.

De forma mais institucional, o Bom Senso FC exigiu, em comunicado, medidas drásticas para que nunca mais aconteça algo parecido com o que ocorreu nas bancadas do estádio que acolheu o jogo Atlético Paranaense-Vasco: «O Bom Senso FC lamenta o ocorrido na partida entre Atlético-PR e Vasco, em Joinvile. Esperamos que os culpados, em todos os âmbitos, sejam punidos e que medidas drásticas sejam tomadas por toda a coletividade do futebol para que cenas como essas jamais voltem a ocorrer. Apoiamos a tolerância zero para a violência nos estádios. Os verdadeiros torcedores e suas famílias merecem isso».

Razões que escapam à Razão

Que possíveis motivos levarão a esta estranha tendência brasileira para os distúrbios nos estádios de futebol?

Sendo o Brasil um país associado a festa, sol e paixão pelo futebol, o que torna os adeptos a assumir comportamentos violentos?

No estudo «A violência nos estádios de futebol: uma análise dos pontos de vista intrínseco e extrínseco», Fernando Mendes Júnior (Universidade Federal da Viçosa, Minas Gerais) e Sílvia Chiapeta (professora de Pedagogia do Movimento Humano em Educação Física da Universidade Gama Filho, do Rio Janeiro), apontam: «O futebol como desporto é considerado por muitos a grande paixão popular e caracterizado pela crítica desportiva como o maior fenómeno social dos últimos anos. Essa afirmação é fácil de ser observada ao se analisar o amor que os torcedores têm pelo seu clube.»

«Porém», observam os investigadores no estudo citado, «há certo tempo que uma inquietação vem incomodando o dia-a-dia de todo torcedor apaixonado por futebol: o caso da violência presente cada dia mais nos estádios. Esse facto tem afastado o torcedor do estádio, que vem optando por, várias vezes, assistir aos jogos em casa, diante do conforto e, principalmente, distante da violência.»

O contato como potenciador da violência

Um dos fatores que neste estudo se aponta para a violência nos estádios brasileiros tem a ver com a crescente agressividade do que ocorre dentro das quatro linhas: «Não resta a menor dúvida de que o futebol é um desporto em que ocorre muito contato, muitas vezes até de forma bem agressiva, que pode acabar acarretando em agressividade física, o que caracteriza, dessa forma, o futebol como um desporto violento. O futebol como meio de expressão de identidades nacionais ou locais tornou-se tema comum de ensaio e pesquisa no que se refere à canalização de algumas formas de agressividade que têm ocorrido num jogo de futebol não precisamente dentro do campo, mas em todo o estádio, sobretudo nas arquibancadas, o que, de certa maneira, está imbuído no contexto desse desporto. Nessa perspetiva, várias foram as reflexões sobre a interferência da violência registada no ambiente futebolístico».

Um exemplo prático apontado no estudo sobre a raíz violenta que, nos últimos anos, parece ter germinado no futebol brasileiro: «Não resta dúvida de que existem vários casos de violência envolvendo jogadores, dirigentes e comissão técnica que exemplificam a violência no futebol do ponto de vista intrínseco. Um facto chamou a atenção em todo o mundo, durante uma partida envolvendo Sport e América pelo Campeonato Brasileiro, no dia 17 de junho de 2007, quando o técnico americano Lori Sandri saiu de campo algemado por desacato a autoridade. Fato como esse, mostra que cabe não só aos jogadores, mas principalmente a todos os profissionais militantes no futebol, entenderem melhor o significado da palavra respeito

Seja como for, estes dois investigadores brasileiros não são perentórios na assunção de que a base do problema poderá estar no comportamento dos jogadores em campo: «Não existem muitas evidências mostrando que a violência ocorre do próprio futebol, uma vez que os jogadores são submetidos a uma série de regras e normas que, quando infringidas, podem ser severamente punidas pelas instituições que regem o futebol».

O papel das autoridades

Os últimos episódios de violência indiciam alguma fragilidade das autoridades brasileiras na prevenção e mesmo numa primeira reação aos problemas nos estádios.

No caso do Atlético Paranaense-Vasco, uma das falhas na resposta teve a ver, precisamente, com o facto de só haver polícias armados fora do estádio, estando a segurança dentro do recinto destinada a uma empresa privada, dispositivo que se revelou manifestamente insuficiente.

A seguir aos incidentes do Arena Joinville, a própria presidente brasileira, Dilma Rousseff, reconheceu a necessidade dos estádios terem policiamento durante os jogos.

«A violência nos estádios de futebol deveria ser tratada com mais responsabilidade pelas autoridades, uma vez que o futebol é o desporto mais praticado pela sociedade brasileira e considerado, por todo o mundo, como um grande espetáculo desportivo, sendo o Brasil conhecido, inclusive, como o país do futebol. A consciencialização das autoridades sobre a gravidade do assunto seria o primeiro passo para que os torcedores voltem a ter segurança nos estádios», apontam Fernando Mendes Júnior e Sílvia Chiapeta.

Mas a mera presença da polícia não resolveria tudo. Jessica Corais, especialista em futebol brasileira e licenciada em História pela Faculdades Integradas Simonsen, aponta o dilema, em declarações à Maisfutebol Total: «Ajudaria muito, mas não adianta policiamento sem que esses policiais tenham uma preparação para lidarem com as torcidas. Exatamente para que não aconteça, como já ocorreu outras vezes, excessos por parte da polícia e isso causar um conflito ainda maior. É preciso preparar essa polícia para lidar dentro dos estádios.»

A impotência dos clubes

A agravar a falta de policiamento está a impotência dos clubes brasileiros em fazer face à ameaça da violência das claques, pela dependência em relação à importância que elas têm nas estruturas dos próprios clubes.

«Muitas torcidas no Brasil agem inclusive dentro do clube, ajudando o presidente e a diretoria a tomarem decisões. É normal as torcidas organizadas terem inclusive salas dentro dos estádios, para guardar suas faixas, por exemplo. Muitas delas ganham ingressos ou descontos na compra, muitos financiam viagens quando o time vai jogar em outro estado. Clube e torcida organizada, em alguns casos, não são entidades separadas, muito pelo ao contrário, andam juntas», explica Jessica Corais.

O fator idade

O futebol é um reflexo da sociedade e pode servir de espelho ao que se passa para lá das paredes de um estádio.

No Brasil, a delinquência juvenil é um problema social muito sério, sobretudo nas grandes metrópoles. Os investigadores apontam o fator idade como agravante para o problema da violência nos estádios brasileiros: «Grande parte de torcedores envolvidos em brigas e agressões nos estádios de futebol é de adolescentes, e isso mostra que a escola junto aos pais tem sua importância para amenizar o índice de violência nos estádios, uma vez que cabe também aos nossos governantes se consciencializarem do seu papel, melhorando a infra-estrutura dos estádios, reforçando a segurança e punindo os vândalos que vão ao estádio para provocar momentos de terror entre vários torcedores apaixonados pelo futebol, entre outras medidas».

Estádios obsoletos

Os estádios são outro problema no futebol brasileiro. Mesmo o leque de 12 que vai acolher jogos do Mundial tem tido problemas na sua construção. Mas o problema maior está nos mais antigos.

Reportagem recente da Associated Press sobre a realidade do futebol no Brasil (que mereceu ampla repercussão nos media norte-americanos e teve direito a tema de «homepage» no site da Fox News) tem este início alarmante: «Vá a um evento desportivo no Brasil e ficará chocado com estádios obsoletos, confusão generalizada e violência sem fim.»

«Não há nada como ser um fã de desporto no Brasil. Mas não é fácil ser um adepto no Brasil», afirma o texto.

As infra-estruturas desatualizadas, a ineficiência dos serviços de venda de bilhetes e a falta de marcação do lugares potenciam a ocorrência de distúrbios.

Problema social

«A violência nos estádios de futebol passou a ser considerada um problema social, uma vez que tomou uma proporção tão grande e um grande incómodo aos interesses em torno do evento desportivo. O futebol brasileiro deve ser encarado com mais profissionalismo pelas suas instituições organizativas, uma vez que milhões de pessoas estão envolvidas e os jogadores, como protagonistas desse espetáculo devem ter a consciência de que exercem importância muito grande na vida de várias crianças, posto que são considerados ídolos e espelho para elas», sentenciam os investigadores.

«Não restam dúvidas de que a violência está caracterizada como parte intensa das camadas de toda a sociedade moderna e de que as causas políticas e sociais têm suas parcelas de culpa por tudo que vem ocorrendo nos estádios de futebol. Com isso, cabe às autoridades públicas e a toda a sociedade contribuirem para manter o controle dentro dos estádios e também proporcionar o deslocamento dos jovens torcedores para outros movimentos de lazer», rematam.

Retrocesso

Em jeito de conclusão, este estudo sobre a violência nos estádios brasileiros comenta: «Infelizmente, nos dias atuais, estamos vivendo um verdadeiro retrocesso no que já foi chamado de futebol-arte. Uma vez que voltámos aos primórdios do futebol, quando Charles Miller chegou da Inglaterra com as regras e o método de jogar. Naquela época, o futebol só poderia ser praticado pela elite aristocrata, pois quando negros e pobres participavam de um jogo, eles poderiam levar pontapés que nada aconteceria, permitindo assim o uso da agressão. Considerando, como fato concreto, que o futebol mobiliza multidões, é motivante, é uma paixão nacional, resgatar esse desporto como instrumento educativo é função da escola e, consequentemente, dos educadores. E, com certeza, a infância seria o melhor momento para que os verdadeiros valores da vida sejam identificados e valorizados por todos».

Impunidade e falta de preparação

Para a jornalista brasileira Jessica Corais, há «uma variedade de fatores» a explicar a violência nos estádios brasileiros. Mas dois em especial: «A impunidade e a falta de preparação da nossa polícia. A impunidade é por conta da falta de fiscalização de leis básicas e atitudes preventivas para punir quem comete violência relacionada ao futebol. Há diversas leis e ideias, principalmente a que cadastra os membros das torcidas organizadas que em poucos lugares sairam de fato do papel. Um modelo muito falado no Brasil é o modelo do futebol inglês, que pune severamente quem invada o campo de jogo, assim como brigas em torno do estádio e dentro. Isso não ocorre aqui. Se hoje o torcedor soubesse que ao se envolver numa briga ele irá preso e ficará na cadeia durante um tempo, pensaria duas vezes antes de cometer uma violência. Por outro lado também temos o despreparo da polícia, que não sabe lidar com casos de violências. Às vezes é conivente e outras abusa de sua autoridade.»

Necessidade de rutura

Será que este é um problema condenado a agravar-se? «O que irá ocorrer após o episódio que ocorreu em Joinville é que determinará isso. As autoridades precisam tratar tudo que ocorreu neste ano como uma rutura na violência relacionada ao futebol. Caso nenhuma medida for feita a tendência é que de fato se agrave. O maior temor é: Será que nossa polícia está preparada para lidar com os torcedores que virão para a Copa do Mundo? Será que nossa polícia ajudará a coibir possíveis atos violentos? A resposta é apenas uma: hoje não.»

Mundial pode ficar imune

Rui Malheiro, especialista em futebol internacional, não dramatiza a questão e lembra que «a violência nos estádios não é um fenómeno exclusivo do futebol brasileiro».

«Estarmos na antecâmara do Mundial 2014 contribui para que o que acontece nos estádios brasileiros ganhe uma enorme dimensão mediática a nível internacional. A tentação é cair no erro da generalização: apontar as claques organizadas como causadoras de todo o mal. É assim no Brasil, é assim na Europa e, como sabemos, acabou por ser um dos fatores determinantes para o surgimento do hooliganismo no futebol europeu. Contudo, o problema está na busca da violência e do confronto físico de alguns membros dessas claques, como também em grupos e organizações que são formadas fora das claques e que, em diversas situações, procuram confundir-se com estas de forma a espalhar o caos e a violência», aponta, em declarações à Maisfutebol Total.

Rui Malheiro põe as coisas em perspetiva: «Os confrontos sempre existiram, em competições nacionais e estaduais, no futebol brasileiro. As medidas de prevenção que foram realizadas nos estádios, a meio da década passada, acabaram por conduzir os confrontos para as ruas. Este ano, com a proximidade do Mundial, a violência voltou às bancadas. Há uma série de possíveis explicações para esta situação. Explicações que podem passar pelo clima de contestação social que o País tem vivido, resultado de uma sociedade de classes, onde são extremamente visíveis os casos de pobreza/miséria, de baixo grau de escolaridade e de falta ou insuficiência de políticas públicas; pelos preços dos bilhetes que afastam os adeptos das classes sociais mais baixas dos jogos da Copa do Mundo; pela pouca competência na organização dos jogos, desde a falta de policiamento dentro e fora dos estádios, muitas vezes entregues a empresas privadas claramente impreparadas, às insuficiências para afastar os adeptos prevaricadores e delinquentes dos recintos desportivos e das áreas anexas, o que lhes confere uma sensação de impunidade, face à falta de medidas preventivas e à pouca eficiência na aplicação das leis existentes; a situação débil de vários dos históricos, claramente os clubes com mais adeptos, que conduziram a situações de aperto na tabela classificativa, insatisfação e em contestação duríssima a dirigentes, treinadores e jogadores; e a enorme cobertura que a imprensa brasileira tem dado a estas situações, confundindo claques organizadas com adeptos e grupos violentos, com fortes repercussões a nível mundial, o que acaba por ter um efeito similar ao dos pirómanos num indivíduo ou grupo violento».

Por tudo isto, até é possível que no Mundial-2014 nem se fale de violência, apesar do país organizador ser o Brasil: «À partida, creio que haverá condições para evitar este tipo de fenómenos nos estádios, tendo também em conta o elevado preço dos bilhetes e as preocupações que a FIFA costuma exibir neste tipo de organizações. Contudo, os espaços anexos aos estádios, como também as cidades em dias de jogo, pré-jogo ou pós-jogo, poderão ser focos extremamente perigosos que deverão ser travados com um planeamento rigoroso por parte do governo brasileiro, que, até agora, promete muito, mas parece-me que tem feito muito pouco. Mas é bom não esquecer que está em causa a imagem de um País, que receberá os Jogos Olímpicos em 2016, como também a possibilidade de surgirem novos e relevantes investimentos fruto da enorme visibilidade.»