O Nacional da Madeira veste, por esta altura, a pele de intruso nos primeiros lugares da tabela classificativa, que, à partida, pareciam inalcançáveis a qualquer emblema da classe média do futebol português. É, por isso, o momento ideal para o Maisfutebol conversar com Manuel Machado, perceber o seu percurso de carreira, recheado de títulos e qualificações europeias, e procurar explicações para que, aos 57 anos, nunca se lhe terem aberto as portas de um clube com aspirações a disputar o campeonato. O professor recebeu-nos no seu gabinete, no Estádio da Madeira, para uma aula esclarecedora sobre a atualidade do futebol português que valeu cada um dos 60 minutos de matéria.


Está há mais de dez anos na I Liga onde soma mais de três centenas de jogos ao serviço de cinco emblemas. Olhando para trás, reconhece algum traço comum às suas equipas que se possa identificar como a identidade do treinador?

«Tenho um perfil, uma ideia e uma filosofia para o jogo que vai evoluindo, mas que, de alguma maneira, não perde a sua essência. Por isso, é normal que as minhas equipas apresentem um padrão de jogo comum que assenta na solidez defensiva, na organização e no rigor tático».


Ao longo desse percurso percebe-se essa tal predileção por uma abordagem mais pragmática em detrimento da nota artística. O sucesso que tem alcançado assenta nesses princípios?
«As minhas equipas são, de alguma maneira, sólidas defensivamente, mas também as houve que fizeram muitos golos, como o Nacional da última época que registou o quinto melhor ataque. Isto contraria, um pouco, a imagem de treinador defensivo que me colam. Penso que há equilíbrio nos dois indicadores».


Essa perspetiva cautelosa é, muitas vezes, criticada, chegando-se a acusar os técnicos de jogarem para o pontinho em detrimento do futebol ofensivo. Como é que se move nesta dicotomia?

«O importante é priorizar. O ótimo é jogar bem e ganhar, mas, entre estes dois conceitos, o vencer está sempre acima. O futebol tornou-se numa indústria e este tipo de modelos abre e fecha portas mediante a capacidade de rentabilizar o negócio. Rentabilizar o negócio é ter resultados e isso vê-se através dos pontos. Jogar bem e perder é o mesmo que conceber um excelente produto e não o conseguir vender a ninguém».


Foi campeão na formação, na 2ª Divisão, na II Liga, alcançou um quarto lugar e vários quintos postos. O que é que lhe falta fazer para chegar a um clube que lute pelos principais títulos?

«Falta-me, realmente, ganhar a Liga e a Taça de Portugal e isso só se consegue estando ao serviço de dois clubes: FC Porto e Benfica. Não surgiu essa oportunidade e, a continuar assim, nunca vai acontecer. Não é difícil ser campeão em Portugal nesses emblemas. Difícil é ser-se treinador desses clubes. O acesso aos grandes não se faz por uma via muito clara, como, por exemplo, acontece no acesso ao ensino superior onde os melhores alunos entram nas melhores universidades».


Se a entrada não é feita, única e exclusivamente, por critérios relacionados com o mérito, o que é que abre as portas desse tipo de clubes?

«O futebol é momento, é oportunidade, é pertencer a lobbies que têm as portas desses clubes mais abertas e é estar bem assessorado em termos empresariais. Sempre fui muito independente, nunca tive empresário, não pertenci a lobbies, nem sou uma pessoa que, socialmente, me dê muito com o meio. Acredito que isso é um fator negativo que inviabiliza a minha entrada num dos grandes».


Teme que ao não atingir esse patamar a sua carreira não tenha o devido reconhecimento?

«Essa ideia perturba-me minimamente. Grande parte do reconhecimento do meu trabalho é ter contribuído para o processo de formação de inúmeros jogadores e, em alguns dos casos, tê-los ajudado a conseguir uma vida melhor. Ver que hoje têm vidas conseguidas, equilibradas, é um grande reconhecimento. Não me parece que chegar a um grande seja sinónimo de ser melhor ou pior. Há outros prémios bem mais importantes».


Os adeptos têm de si a imagem de um treinador diferente, com um discurso muito particular e uma forma racional de olhar para o jogo. Essa forma cerebral de comunicar prejudica-o?

«As pessoas fazem a leitura de que sou um técnico que não entusiasma e quando se tem esse rótulo não nos tornamos muito apelativos. Não sou de discursos inflamados, nem de criar expectativas pouco realistas. Não vendo ilusões, nem as vou vender. Agora, enquanto técnico de um dos grandes emblemas [FC Porto ou Benfica] tenho as mesmas possibilidades de sucesso do que qualquer outro que passou, está ou virá a passar. Se nunca lá chegar também não será por isso que a minha felicidade ficará melindrada».

Tem dito, em diversas ocasiões, que se revê no percurso de carreira do Leonardo Jardim cujo trajeto tem algumas semelhanças com o seu. Como é que olha para esta nova vaga de técnicos que está a proliferar no futebol português?
«Não tenho um passado enquanto praticante que permita acontecer coisas como têm acontecido a técnicos que foram brilhantes jogadores, mas que não tinham passado nenhum e aparecem logo a um nível alto. Se perguntar se me identifico mais com o Abel Xavier, com o Costinha ou com o Leonardo Jardim não tenho dúvidas. Acredito em trajetos sustentados porque o mercado é muito exigente. O espaço de entrada tem a porta muito larga, mas, depois, a própria competição encarrega-se de fazer a filtragem daqueles que conseguem ou não permanecer».


Depois de várias épocas consecutivas na I Liga Portuguesa, rumou à Grécia para uma experiência no estrangeiro. Correspondeu às suas expectativas?
«Desportivamente foi interessante porque conseguimos resolver o problema e, não fosse um incidente que nos subtraiu pontos, penso que teríamos atingido um lugar europeu. No fundo a Grécia padece dos mesmo problemas que nós, mas, no plano organizacional, estão alguns anos atrás. Ainda assim, há um grande entusiasmo, as pessoas envolvem-se mais com o jogo e, por isso, foi uma aventura interessante no plano social. No plano financeiro nem por isso porque as coisas correram mal».

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