Algures, nos meus 23 pares de cromossomas, está escrito que, por muito que quisesse, nunca iria ser grande futebolista. Podia tentar, treinar, decorar truques, formar uma mente gélida, que nunca seria assim tão bom. Algures, no meu código genético, estava determinado, tão certo como o destino para quem nele acredita, que não seria aplaudido de pé depois de um golo fantástico. Parte de mim, uma parte ridícula de mim, ainda crê, no entanto, que se tivesse aberto a porta B em vez da A, se tivesse virado à esquerda em lugar da direita, se não tivesse passado debaixo de uma escada ou quase pisado um gato preto, se tivesse acertado aquele livre a minha vida teria sido diferente.

Há algo de hereditário no jogo. Tem de haver. Rui herdou a arte de José Águas, Carlo recebeu a inspiração de Fabio Cudicini. Sandro foi tão Mazzola como o pai Valentino, que ano após ano recebeu coroas de flores, em Turim, por ter deixado o futebol e a vida em Superga. Jean e Youri elevaram bem alto, em França, o nome Djorkaeff. Paolo Maldini somou jogos e troféus a fio, fazendo inveja ao velho Cesare, que também era casmurro de mais para deixar a relva e foi sentar-se para o banco. Finn Laudrup dividiu o seu talento por Michael e Brian, os vikings com mais jeito para a bola. Os Frank Lampard, progenitor e descendente homónimos, cresceram no West Ham e jogaram com os três leões ao peito, um feito para poucos.

O estranho é que algo sempre corre mal quando há sobrecarga de talento. Como se os cromossomas só suportassem uma determinada quantidade de génio na viagem. O gene não tem direito a usufruir do excesso de bagagem. Edinho foi defender o que Pelé criava com fartura, o golo, mas não chegou longe. Jordi nunca foi Cruijff como Johann, que carregou o testemunho entre o «Rei» e Maradona. Da vida atribulada de El Pibe é conhecido um jovem ilegítimo, nascido em Itália, à procura de um espaço num calcio que lhe afunda ainda mais a cruz do nome nas costas.

Mas o futebol tem regras próprias. Quantas vezes demos por nós a contar alelos comuns a Hleb e Karagounis, Nuno Gomes e Baros, Aquilani e Giannini, Pelé e Robinho, Messi e Maradona, e Agüero e Romário? Sempre que nos esquecemos daquelas réguas de medir talento, que nos obrigam a comparar tudo o que mexe, podemos olhar sem rigor matemático: a corrida irregular, as pernas afastadas e os braços contraídos em pose de Incrível Hulk do bielorrusso e do grego; o futebol mais participativo do português e do checo, hoje algo apagados depois do bom início de milénio; a visão de dois romanos com criatividade maior que o calcio; a capacidade de desenhar oitos na área por parte dos dois ex-Santos; aquele jeito maradoniano de carregar a bola no pé esquerdo do plagiador perfeito do Pelusa; e a pose erecta, a decisão em espaços reduzidos e a alta velocidade do baixinho e de El Kun. A bola, denominador comum, gravada em cada gene.

Um vendaval abatia-se sobre a humanidade. Não sentia as pernas, rasgadas pela terra, trituradas pelas dos outros. Não se via a cal, a terra empapara, fizera lagos sem pontes. As traves enferrujadas, que escondiam ninhos de vespas em dias de sol, ameaçavam desabar. Os pais gritavam, como se apostassem num combate de galos. O meu, que só se lembrava do jogo quando queria meter conversa com alguém, ficara em casa. Alguém tirava notas. Quis fazer a jogada da minha vida. Tirei dois da frente, ignorei todas as regras de pólo aquático, e senti um puxão. Levantei-me à nona contagem e acreditei que era Maradona pela última vez. Folha-seca. A barreira de putos não era obstáculo para um deus argentino. Levantei as mãos, mas a bola traiu-me, depois de raspar no poste. Perdoa-me, Diez!

«Era capaz de viver na Bombonera» é um espaço de opinião da autoria de Luís Mateus, editor do Maisfutebol, que escreverá aqui às terças e sextas-feiras