Miguel Esteves Cardoso tem uma crónica, genial como todas as que escreve, em que sublinha que quando alguém parte, a melhor forma de lidar com isso é deixar correr o coração: de memória em memória.

Tudo tem um fim. Os amigos calam-se, as relações terminam, as pessoas morrem. É inevitável e é preciso ter paciência. Ficar triste e aguentar ficar triste.

No fundo, digo eu, aceitar a mágoa é a melhor forma de homenagear alguém. É a forma mais bonita de homenagear alguém que foi importante na nossa vida.

Ora Marinho Peres foi muito importante na vida do futebol português. Provavelmente mais do que ele próprio imaginava. Ele foi um dos grandes. Capitão da seleção brasileira no Mundial 74, jogou com Pelé no Santos e com Cruijff no Barcelona.

Aliás, só saiu do Barça para fugir ao serviço militar obrigatório no tempo do franquismo. Filho de espanhóis, foi chamado à tropa e conseguiu voltar ao Brasil.

Mais tarde, e com um currículo de estrela mundial, chegou a Portugal para treinar o V. Guimarães. Eram anos dourados em que o futebol nacional conseguia atrair nomes como Valdo, Ricardo Gomes, Ricardo Rocha, Silas, Mozer, Branco, Luisinho, Casagrande, Geraldão ou Aldaír. Tudo jogadores de seleção brasileira.

Mas eram também anos terríveis, ali no final da década de oitenta, início dos noventa, quando o futebol português mergulhava em ódio, violência e agressividade. As histórias são conhecidas: dentro e fora de campo, valia tudo para ganhar.

Nessa altura Marinho Peres mostrou que era possível ser diferente.

O brasileiro era um homem de bem com a vida. Sempre bem-disposto, divertido e amigo. Um cavalheiro.

Mostrou ao país que não era preciso criar uma guerra para ganhar e mostrou aos miúdos da altura, como este que escreve estas linhas, que podia haver outro futebol: positivo, divertido, alegre e bem-educado. Um futebol com prazer.

Ganhou uma Taça de Portugal no Belenenses, naquele que ainda é o último grande troféu do clube, levou o V. Guimarães a um terceiro lugar e conseguiu chegar com o Sporting às meias-finais da Taça UEFA.

Mesmo quando Sousa Cintra o despediu, não guardou rancor e compareceu na sala de imprensa ao lado do presidente para lhe agradecer pela oportunidade.

Quando comecei a ser jornalista, Marinho Peres estava na segunda passagem pelo Belenenses. Infelizmente, acho que nunca estive com ele. Nem sequer me lembro de ter partilhado a mesma sala. Mas lembro-me bem das histórias dos colegas que faziam o dia a dia do clube: sempre hilariantes.

Tal como me lembro das minhas memórias de adepto. Como, por exemplo, aquele dia de Taça UEFA em Alvalade em que a RTP fez uma reportagem com Sousa Cintra: o excêntrico presidente que no dia a seguir a ser eleito foi personagem mistério num programa de entretenimento do final da tarde.

Essa reportagem mostrou, a dada altura, Sousa Cintra a fumar charuto no balneário e a tentar motivar o brasileiro Careca com a sensibilidade de um tijolo. «Tens de mostrar a estes italianos que não és merda nenhuma», repetia-lhe. Com uma paciência de Jó, Marinho Peres respondia que «ele vai mostrar, ele vai mostrar», enquanto tentava delicadamente levar o presidente para longe do avançado.

Por estas e por outras, pela sensibilidade, pela amizade, pelo bom-humor e pelo sorriso rasgado é que as as pessoas o adoravam. E ele adorava as pessoas. Adorava conversar, adorava juntar muita gente no aniversário, adorava rir.

Lembro-me que quando foi operado, os jornalistas se juntaram para lhe fazer uma surpresa no hospital.

Isto só é possível quando alguém marca as pessoas. E Marinho Peres marcava-as.

Num tempo de guerra, ele foi paz. Numa época de cinzento, ele foi branco. Numa fase de chuva, ele foi sol.  Partiu esta segunda-feira e nós devemos homenageá-lo. Deixar correr o coração, de memória em memória.

«Box-to-box» é um espaço de opinião de Sérgio Pereira, editor-chefe do Maisfutebol