Miguel Garcia passou à história como o Herói de Alkmaar.
Ele que foi formado no Sporting, ainda com idade de júnior encantou Luiz Felipe Scolari, passou pela Liga Italiana, esteve no futebol espanhol, jogou a Champions pelo Sp. Braga, enfim, teve uma carreira bem decente.
Esses tempos, porém, já passaram, e hoje, aos 40 anos, Miguel Garcia é um caso de sucesso: um antigo jogador que soube reinventar-se e consegue ter um nível de vida se calhar até superior ao que tinha enquanto jogava. É nessa qualidade, aliás, que lança um alerta.
«Acho que o importante é dizer aos jogadores que o primeiro passo é aprender: vão tirar um curso, vão tirar formações, vão aprender a gerir o vosso dinheiro. Têm de adquirir conhecimentos mínimos de investimento, para não sofrerem mais tarde», refere.
«Hoje há muita informação disponível, um jogador consegue treinar bem, descansar e depois estar em casa a fazer uma formação, a tirar um curso, a recolher informação na internet. As escolas têm programas com horários para os jogadores e só não se prepara quem não quer.»
Miguel Garcia, tal como Carlos Martins já fez em tempos, admite que o final da carreira não foi difícil para ele: já se tinha preparado e consegue ter nesta altura um nível financeiro superior ao que tinha enquanto jogador: ou pelo menos, igual.
«O imobiliário é uma área em que, se se souber investir bem, ganha-se muito dinheiro. Como todos sabemos, o mercado imobiliário nos últimos cinco ou sete anos duplicou o seu valor. Quem entrou nestes investimentos em 2011 ou 2012, quando o mercado português era pouco dinâmico, consegue ainda estar a fazer muito dinheiro», admite.
«Por vezes alguns jogadores procuram-nos para darmos aconselhamento. Onde é melhor investir, o que é que deve comprar, é melhor comprar para remodelar e vender ou comprar para arrendar? É normal, mas o importante, e é isso que eu digo a todos, é estarem confortáveis no investimento que fazem. E isso obriga a estar bem informado.»
«O ordenado médio de um jogador da Liga, excluindo os quatro grandes, ronda os 5 mil euros brutos»
Miguel Garcia dá, de resto, outras dicas importantes. Não vale a pena, por exemplo, investirem numa área da qual não gostam: é importante ter prazer no que fazem, até para estarem sempre bem preparados. E, claro, acompanharem de perto o que é feito com o dinheiro deles.
«O meu conselho é que tirem uma formação o quanto antes numa coisa que gostem. É fundamental ter conhecimento sobre o que estão a fazer, ou outros estão a fazer por eles.»
As palavras de Miguel Garcia, refira-se, foram proferidas para quem o quis ouvir, numa conferência sobre literacia financeira na Universidade Lusófona.
Um encontro promovido pelo Sindicato dos Jogadores, e que teve a colaboração da CMVM e da Associação Portuguesa de Bancos, que aproveitou a Semana da Formação Financeira para alertar para um problema que atinge um número enorme jogadores de futebol.
«Fizemos um inquérito aos jogadores para saber qual era o nível de literacia financeira da classe e o resultado é muito baixo. Muitas pessoas entendem que os jogadores de futebol são uma classe privilegiada e isto é uma forma de desmistificar essa questão. Sabemos que há uma classe privilegiada, de facto, mas é uma elite», referiu Joaquim Evangelista.
«A esmagadora maioria dos jogadores tem o mesmo problema de todos os outros portugueses, com a dificuldade acrescida de estarmos a falar de uma profissão de desgaste rápido, que termina muito cedo e que pode a qualquer momento ser interrompida por causa de uma lesão. Estamos a falar também de uma classe que não tem um nível de habilitações elevado e, por isso, tem mais dificuldade em lidar com estes problemas. Por isso é que para nós a educação, e neste caso particular a educação financeira, é uma prioridade.»
João Oliveira, secretário-geral do Sindicato de Jogadores, adianta até um número curioso.
«O ordenado médio de um jogador, excluindo deste cálculo os quatro grandes, ronda os 5 mil euros brutos na I Liga e os 2200 na II Liga. O jogador enfrenta os mesmos problemas do cidadão geral: fazer face aos seus empréstimos, pagar os seus impostos», conta.
«Por isso esta atividade tem de ter os mesmos apoios que tem o cidadão geral. Há uma pequena minoria que aufere muito dinheiro e esses têm assessoria financeira para investir. Mas depois há uma imensa maioria que não ganha esses valores e não que não tem assessoria financeira, têm de ser eles a ler, a estudar e a aprender. Mas é extremamente difícil que um jogador pense num plano B durante a carreira, sobretudo quando são mais novos.»
O dirigente acrescenta outro dado que é muito importante nesta conversa.
«Às vezes há jogadores que chegam ao Sindicato de Jogadores com um nível de dúvidas que nos alerta para a saúde mental desse jogador.»
«Quando se dá um passo atrás em termos financeiros isso afeta muito a saúde mental»
Ou seja, há vários jogadores atingidos por problemas psicológicos provocados pela iliteracia. São pessoas que geriram mal o património e ficaram sem nada, ou terminaram a carreira e não têm uma almofada financeira, ou até fizeram maus investimentos e perderam tudo.
«Alguns jogadores com 20 anos já ganharam muito dinheiro num curto período e não sabem lidar com essa realidade. Isso causa problemas, não só familiares e pessoais, como também profissionais. Vemos jogadores que se perdem porque não sabem gerir esta dimensão financeira e acabam por ter também problemas de saúde mental», corrobora Joaquim Evangelista.
«Sentem-se incapazes para depois dar respostas competentes, quer pessoal, quer familiar, quer profissionalmente. É preciso apelar ao jogador para que se informe e se esclareça no que diz respeito às questões financeiras. Não tomem opções sem se informarem previamente. Porque isso pode fazer a diferença na vida deles.»
Miguel Garcia conheceu vários desses casos ao longo da vida. O antigo jogador diz que a fronteira é por vezes muito ténue, sobretudo quando se é muito jovem e imaturo.
«Eu, por exemplo, quando cheguei à primeira equipa do Sporting tinha colegas de 30 anos que tinham grandes carros, roupa de marca, relógios caros. E a tentação é irmos comprar essas coisas, embora não tenhamos a mesma capacidade financeira. Eu tinha um Seat Ibiza, comercial, e tinha um bocadinho de vergonha quando entrava no parque de estacionamento da equipa principal. Por acaso, como ganhava pouco, tive de ter calma e não gastar o que não tinha. Mas há outros jogadores que não têm essa calma», conta.
«É preciso também ter personalidade e nem todos têm. Mas não é só no futebol. Um dos grandes problemas da nossa sociedade é o dinheiro, provoca divórcios, zangas entre irmãos.»
Miguel Garcia sabe que é uma situação complicada. Ele já passou pelo futebol, já fez parte de um balneário, e recorda como muitas vezes um jogador de futebol vive numa bolha à parte, na qual a preocupação não passa propriamente por estudar e investir na formação.
«Quando estamos a jogar, pensámos que vamos ganhar aquele valor para sempre, mas depois acontecem imprevistos, há lesões... E a verdade é que quando se está habituado a ganhar um certo valor e se dá um passo atrás em termos financeiros, isso afeta muito a saúde mental. Tenho colegas que pediam dinheiro emprestado para pagar a prestação da casa», recorda.
«Jogadores que se calhar ganham dois ou três mil euros e pensam em comprar carros de 50 mil euros. Depois acabam por não se afirmar e são obrigados a vender o carro, perdem dinheiro, ficam com dívidas. As más opções acabam por se pagar sempre.»
«Não gastem o dinheiro que não têm em carros, roupas e relógios»
Miguel Garcia deixa por isso apenas um conselho: estudem, pela vossa saúde.
«Um jogador com vinte anos não se preocupa com a Euribor. Eu próprio não me preocupava quando tinha essa idade. Quando estamos a jogar ao mais alto nível, vivemos muito o próximo jogo. A literacia financeira não nos passa sequer pela cabeça», sublinha.
«No meu caso, quando tinha 24 ou 25 anos, fui para o futebol italiano, tive uma lesão grave e pensei que a minha carreira ia acabar. Então comecei a estudar. Tinha o 12º ano, tinha entrado na Faculdade de Motricidade Humana, em Desporto, e tinha congelado a matrícula, então o que fiz foi pedir transferência de curso e ir estudar Gestão Imobiliária, que era uma área de que gostava. Dediquei-me cada vez mais à gestão imobiliária, li livros, fui fazer formações...»
Ainda voltou a jogar, fez mais sete temporadas de bom nível, mas nunca mais deixou de estudar.
Por isso quando o final da carreira chegou, Miguel Garcia estava preparado para uma transição pacífica. Tinha algo para fazer, algo que também o apaixonava e que, para além disso, lhe permitia manter o nível financeiro dos tempos de jogador.
«Quando estava no Sporting tinha colegas mais velhos, como o Sá Pinto, o João Pinto, o Pedro Barbosa, que no balneário comentavam investimentos que faziam: diziam que iam investir numa determinada obrigação de tal empresa, porque estava a dar cinco por cento ao ano. Depois havia os jogadores mais novos, como eu, o Carlos Martins, o Lourenço, que íamos atrás porque os ouvíamos falar, mas nem sabíamos no que estávamos a investir. Não sabíamos se era uma ação, uma obrigação, um fundo. Aconselho todos os jogadores a não fazer o mesmo», refere.
«E sobretudo não gastem o dinheiro que não têm em carros, roupas e relógios. O que devem fazer é ir aprender: tirar uma formação, aprender a fazer essa gestão, estudar.»
Pela vossa saúde.