Pedro Fernandes nasceu há 42 anos em Lisboa, viveu os primeiros anos no Príncipe Real, mas cresceu verdadeiramente na Margem Sul, de onde nunca mais teve a coragem de sair. Por influência do avô tornou-se sportinguista e foi as primeiras vezes a Alvalade, num hábito que cultiva até hoje e que já passou aos dois filhos.

Na adolescência teve o sonho de ser jogador de futebol e chegou a fazer treinos de captação no Sporting, num dia agitado e que ainda hoje recorda com saudade. Não ficou e diz que se calhar foi melhor assim. O amor pelo verde e branco, esse, nunca mais o largou, ao ponto de não ter segurado as lágrimas da primeira vez que levou os filhos a Alvalade.

Qual a primeira memória que tem do futebol?

A primeira memória do futebol é provavelmente do velhinho Estádio de Alvalade, com o meu falecido avô Arlindo, a ver jogos de Sporting. Não me lembro exatamente qual foi o primeiro jogo, mas lembro-me que não havia ainda cadeiras, o meu avô levava sempre uma almofadinha de casa, para pôr debaixo do rabo, e dava-me essa almofadinha a mim. Quando não havia almofada, era o jornal: dobrávamos o jornal em dois ou em quatro e lá ficávamos sentados a ver os jogos. Foi aí que ele me passou o bichinho do futebol, e em particular do Sporting.

E é uma coisa que já tenta passar aos seus filhos, certo?

Sim, sim, claro. Não que eles tenham tanto sportinguismo quanto eu, não vibram ainda tanto, mas se calhar eu na idade deles também ainda não vibrava muito. É uma coisa que vai crescendo.

Mas dizia que a sua paixão pelo Sporting vem da influência do seu avô Arlindo...

O meu pai também é sportinguista, mas o meu avô era aquela pessoa que sofria mesmo. Tenho memórias em casa dos meus avós, quando os jogos não davam na televisão, do meu avô na cozinha a ouvir o relato e a sofrer intensamente, à janela a fumar que nem um perdido. Eu ficava ali a observá-lo e aquele nervoso passava para mim. Depois o meu avô festejava os golos e eu festejava com ele. São memórias muito boas do meu avô, coisas que recordo com muito carinho.

E quando começou a ser um adepto militante?

Depois na altura do liceu comecei a ir com amigos que também iam a Alvalade. Tinha um amigo que entrava sempre à socapa, não sei bem por onde. Lembro-me que chegávamos à entrada e ele dizia ‘encontramo-nos lá dentro’. Não sei por onde ele entrava, mas o que é certo é que chegava ao pé de mim. Eu sou sócio do Sporting desde os 16 anos, por acaso até foi um tio meu que é benfiquista que me ofereceu o cartão de sócio e me pagou seis meses de quotas, e desde aí comecei a ir com mais assiduidade ao estádio.

Hoje é aquilo que se pode chamar um sportinguista doente...

Eu de facto sofro muito com o Sporting. Tempos houve em que uma derrota, ou até um empate, do Sporting era coisa para me estragar o fim de semana. Ficava de mau humor o fim de semana inteiro. Hoje já não é tanto assim. Sendo que agora estamos na mó de cima e não queria nada perder a vantagem que temos, por isso, como há esperança, este ano estou a sofrer um bocadinho mais outra vez. Nos outros anos já era aquela coisa do ‘pronto, olha, mais um ano’. Agora estamos mais competitivos e estou a sofrer mais outra vez.

Nasceu primeiro o amor pelo Sporting ou o amor pelo futebol?

Pelo Sporting, tudo começou pelo Sporting. Claro que adoro futebol, sempre joguei com amigos, sempre sonhei ser jogador de futebol. Um sonho que não foi concretizado, mas nem todos fomos predestinados para ser o Cristiano Ronaldo. Eu provavelmente ia ser mais um que andaria aí pelos Distritais, portanto até foi melhor assim. Se bem que eu até muito tarde joguei futebol na rua com os meus amigos e lembro-me de pensar: ‘eh pá, não estará aí um olheiro, na janela de um prédio, que vá reparar em mim e ainda vou ter uma oportunidade’. Mas nunca aconteceu.

Embora tenha chegado a tentar...

Cheguei a ir fazer treinos de captação no Sporting, mas não estava num bom momento de forma: mesmo, de verdade, estava lesionado. Mas tinha 16 anos, achava que era a minha última oportunidade e fui lá fazer um treino de captação. Fiz um treino num daqueles campos pelados, ao pé do antigo Estádio de Alvalade. Achei que tinha recuperado da lesão, mas não tinha. Fiz o treino todo cheio de dores, depois fui para o hospital, queriam dar-me umas injeções na coluna, eu não deixei, fiquei à espera que passasse com comprimidos.

Antes disso já tinha brilhado na Escola de Futebol Humberto Coelho, não é?

Exatamente. Foi aí que voltei a ganhar a esperança que podia ser jogador de futebol. Aquilo na prática é um campo de férias, em que jogávamos futebol de manhã à noite. Todos os dias íamos para o Estádio Nacional, fazíamos treino específico, fazíamos peladinhas e foi uma semana que me correu muito bem. Ganhei o prémio de melhor jogador sub-16, na altura foram o Eusébio e João Pinto que nos entregaram os prémios, e saí de lá todo inchado. Quando ganhei aquele prémio fiquei a pensar: ‘é pá, eu sou mesmo uma estrela do futebol em potância’. E foi a partir daí que fui tentar os treinos de captação do Sporting.

E lembra-se das emoções desse dia em que foi aos treinos de captação do Sporting?

Lembro-me, lembro-me. Ia nervosíssimo. Ia a pensar se iríamos treinar no relvado do Estádio de Alvalade, isso sim, seria um sonho. Não foi, mas fomos equipar-nos a um balneário do estádio. De repente estava ali dentro, a viver aquilo tudo, o nervoso dos últimos passos até chegar ao pelado, depois a fazerem equipas. Mas éramos tantos, que eu percebi que as hipóteses eram uma num milhão. Escolheram onze para cada lado, ‘em que posição é que tu jogas?’ e meteram-nos a jogar. O treino pareceu-me muito curto, aquilo passou num ápice. No fim escolheram três ou quatro. Eram todos muito maiores do que eu, todos com um grande corpanzil, até fiquei a pensar como tinham a minha idade. E acabou tudo muito depressa.

Mas foi um dia intenso...

Um dia não, porque eu andei semanas a pensar naquilo. Lembro-me de passar muitos dias em casa a fazer gelo nas costas, para ver se as dores me passavam, para poder jogar em condições. Mas no fim passou muito rápido e só voltei a pensar no futebol dois anos depois.

Ainda voltou a pensar nisso?

Sim, dois anos depois, aos 18, fui tentar outra vez, num clube em que tinha jogado aos nove anos, que foi o Domingos Sávio, e quando cheguei lá percebi que miúdos que tinham jogado comigo aos nove anos, ainda lá estavam. Não tinham saído dali. Então pensei: ‘é pá, se estes miúdos ainda não saíram daqui, não sou eu que chego aos 18 anos e vou ter uma carreira no futebol’. Convidaram-me para fazer parte do plantel. Eu já era sénior, mas podiam jogar três seniores no plantel júnior e queriam que eu fosse um deles. Mas acabei por desistir.

Então nunca jogou futebol federado...?

Joguei aos nove anos, no Domingos Sávio. Nas escolas do Desportivo Domingos Sávio fiz um campeonato distrital. Ainda fiz alguns golos, não muitos, uns cinco ou seis, mas mesmo assim fui o segundo melhor marcador da equipa. Recebia dois contos e quinhentos por cada golo.

Quem é que lhe pagava esse dinheiro?

Os meus avós. No somatório total. Uns davam mais do que os outros, mas no total era isso.

Ainda era bom. Naquela altura era muito bom...

Era bom. Era ótimo. Mas era tudo muito amador. O campo era cheio de buracos. As bolas quando batiam no chão não sabíamos muito bem onde iam parar, tinham de ser os familiares a levar-nos porque não havia carrinha do clube, o treinador dava-nos laranjas para comermos ao intervalo, no final tínhamos uma sandes de mortadela e um suminho de laranja. Era muito amador, mas muito giro, muito divertido. Treinávamos à chuva e tivemos um gostinho do que era ser um jogador profissional, mas dentro daquelas condicionantes.

O Domingos Sávio foi o clube de onde saiu o Quaresma.

Lembro-me que o Dominguez jogou lá, o João Pereira também jogou lá, o Quaresma não me lembro. Mas eu quando fui para lá fui para o lugar do Dominguez. Ele era extremo esquerdo, mas tinha saído, e eu também era extremo esquerdo. Mas com muito menos sucesso que ele.

Geralmente para todos nós o futebol nasce na rua. Também foi assim para o Pedro?

Eu morava no Príncipe Real, mas aos dez anos os meus pais mudaram-se para a Margem Sul e aí eu tinha muito espaço para jogar na rua. É das coisas que eu tenho mais pena é que os meus filhos não possam jogar na rua. Os tempos hoje também são outros, hoje não passa pela cabeça de ninguém o meu filho sair de casa de manhã e só voltar para comer e para dormir, que era o que acontecia comigo. Havia um pátio de terra batida, que a minha mãe via da janela, e os meus dias eram a jogar à bola. Até à noite. Nós já nem víamos a bola, era tão escuro que já não se via a bola, e continuávamos a jogar, até a mãe aparecer à janela a gritar que era hora de jantar.

E nessas alturas, quando pensava que à janela estaria um olheiro a olhar para si, era o melhor da sua rua?

Eu não sei se alguma vez fui o melhor da minha rua, mas tinha uma técnica apurada e que fazia bons jogos, fazia. Eu era canhoto e marcava bastantes golos. Era um jogador acima da média. Agora se a média na minha rua era fraca... isso fica aqui entre nós.

Então era uma espécie de Balakov...?

É pá, o Balakov era o meu grande ídolo. O Balakov e o Figo. E sim, sonhava poder ser uma espécie de Balakov lá da minha rua. E às vezes conseguia, quando os jogos me corriam melhor.

Quais são as memórias do Sporting que tem dessa altura?

Lembro-me dos jogadores: o Valckx, o Ivkovic na baliza, o Juskowiak na frente com o Jorge Cadete. Lembro-me do Leal, que era um jogador de quem eu não gostava muito...

O lateral esquerdo.

Lateral esquerdo, exatamente. Muito alto, muito desengonçado. Lembro-me do Oceano, claro, do Carlos Xavier. Lembro-me do Figo, tive a sorte ainda de ver o Cristiano Ronaldo no Sporting. Lembro-me de festejar o título do Inácio, lembro-me de invadirmos o relvado e levarmos coisas para casa, porque o estádio ia ser demolido. Havia gente a levar cadeiras, havia gente a levar bocadinhos da vedação, eu levei um pedaço de relva, ainda ficou uns tempos num canteiro em casa dos meus pais, depois acabou por apodrecer. Se calhar devia ter trazido uma cadeira...

São memórias que ficam para sempre?

São ótimas recordações e espero reviver esses momentos este ano, mas agora com os meus filhos.

E é verdade que chorou a primeira vez que levou os seus filhos a Alvalade?

É verdade. Ainda agora ao pensar nisso me arrepiei outra vez. É verdade. Levei os meus filhos ao estádio e pedi à minha mulher que nos tirasse uma fotografia aos três. Quando ela me passou o telemóvel, eu vi aquela foto, vi os meus filhos todos equipados e no estádio, aquilo emocionou-me, porque o Sporting mexe muito comigo. É um amor diferente do amor que tenho pela minha mulher, pelos meus filhos e pelos meus familiares, como é óbvio, mas é um amor enorme que eu tenho. Quando percebi que os meus filhos estavam ali comigo, a sofrer pelo Sporting comigo, aquilo mexeu tanto comigo que comecei a chorar. Também sou uma pessoa de choro fácil, mas foi um momento de felicidade enorme. Poder partilhar aquilo com eles e poder passar-lhes o amor que tenho pelo Sporting, é das coisas que mais alegria me traz, é verdade.

Uma das coisas que queria fazer como pai era viver esse pelo Sporting com os seus filhos?

Sim. Muita gente pergunta-me porque não deixo os miúdos serem do clube que eles quiserem. Porque não deixo. Quero que sejam do clube que eu sou, para podermos sofrer todos juntos quando tivermos que sofrer e festejar todos juntos quando tivermos que festejar. Acho que é normal.

É normal ter a ambição de construir memórias de felicidade com os filhos, não é?

Claro, como é óbvio. Os pais que não fazem isto são os que não ligam muito a futebol, porque se ligassem não deixavam passar a oportunidade.

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