A primeira vez que saiu sozinho de casa, com 10 anos de idade, foi para ver ao vivo, no peão, o Sporting dos «Cinco Violinos».

Hoje, com 80, desfila em conversa com o Maisfutebol memórias na primeira pessoa sobre gerações de ouro do futebol português, sempre pontuadas com um riso contagiante.

António Victorino de Almeida fez carreira na capital austríaca, onde se tornou numa espécie de embaixador que visitava as delegações das portuguesas que por lá passavam.

Em Viena, onde viveu durante 27 anos, tornou-se benfiquista, adepto do rival, quando percebeu que graças às conquistas europeias dos encarnados o deixaram de confundir com um espanhol: «Também me divorciei. Era o que faltava que não pudesse mudar de clube.»

Amigo pessoal de José Águas e Pedroto, lendas de Benfica e FC Porto, o maestro, pianista e também escritor [tem oito livros publicados] compara uma equipa com uma orquestra. E a música com o jogo: um futebol em que há maestros como Beckenbauer e solistas virtuosos como Maradona.

Como começou a sua paixão pelo futebol?

Não me lembro de mim sem gostar de futebol. Nasci no Campo Grande e a primeira vez que saí sozinho, tinha eu dez anos, foi para ir ali ao lado ver um jogo do Sporting. Foi em 1950, num tempo em que os pais com um filho único lhe davam dinheiro para ir sozinho para o peão.

O ambiente no estádio era diferente, não?

Ouvi pessoas a gritar, insultos ao árbitro, à mãe do árbitro... [risos] eventualmente, até terei assistido a um par de estaladas, mas estava rodeado de pessoas. Hoje, aquilo que equivale ao peão é um sítio onde estamos rodeados de bestas. Isso é horrível. Só não dá cabo do futebol porque o futebol é, de facto, um jogo genial. É extraordinário! Tenho uma admiração enorme pela beleza e conceção do jogo.

Encontra algum paralelismo entre uma equipa futebol e uma orquestra?

Completamente. O futebol também é uma arte, mas a música também é um desporto, porque é necessário muito músculo, muita energia, sabedoria de gerir energia e aplicá-la no momento certo. O futebol e a música exigem uma enorme destreza.

E o futebol também tem os seus maestros…

O Beckenbauer era um maestro. O Didi, do Brasil, era outro. Não posso alargar muito para não tirar o mérito aos verdadeiros maestros. Mas um Didi ou um Beckenbauer aparece uma vez. Ou um Rui Costa…

Já agora, Maradona ou Messi são mais solistas, não?

Esses são solistas virtuosos. As analogias são absolutas. Por isso digo que o desporto é uma arte e a arte que se executa é também um desporto. Há um décimo de segundo para que um gesto de um maestro esteja certo ou errado. É como a bola que passa a um milímetro do pé. O José Águas queixava-se disso.

Quando ele jogou no Austria Viena [na época 1963/64] conviveram muito, não?

Fui amigo pessoal do José Águas. Ele ia aos meus concertos, jantávamos juntos… Na altura, ele estava muito zangado porque o colocaram a jogar a extremo-esquerdo por causa de um brasileiro chamado Jacaré, que também era avançado-centro, mas não se comparava ao Zé Águas. Ora, naquela posição ele não rendia. Além disso, andava zangado com os próprios colegas de equipa por outro motivo: jogavam mal de propósito porque ele ganhava bem mais do que eles. «Estes gajos passam-me sempre a bola a dois centímetros do pé. É o suficiente para eu não tocar nela», lamentava-se ele. Até essas maldades exigem destreza. [risos]

Esteve 27 anos a trabalhar como músico e a viver na Áustria. Como foi essa fase da sua vida?

Vivi lá um inevitável período de viragem. Quando se falava em Portugal as pessoas diziam logo «Olé, Olé» e coisas assim. Tratavam-nos como espanhóis. Aqueles que conheciam Portugal! Havia outros que nem sequer tinham ouvido falar do nome do país. E outros ainda que nos conheciam pelos piores motivos. Chamavam-nos fascistas, o que, de facto, o governo de então era, colonialistas também, disso então não havia dúvida nenhuma.

Na altura não havia um especial orgulho em ser português?

Para um miúdo de 20 e poucos anos era aborrecido ser apátrida. Até que veio o grande jogo da final da Taça dos Campeões Europeus com o Real Madrid. Os famosos 5-3 do Benfica, em 1962. Águas, Eusébio, José Augusto… Aquela equipa fantástica. Assisti ao jogo pela televisão de um café em Viena. No dia seguinte, quando saí à rua, as pessoas do meu bairro, das lojas que eu frequentava, etc, começaram a tratar-me por «Der Portugiese». «O Português». Ou seja, o Benfica deu-me a minha nacionalidade num sítio em que vivi 27 anos seguidos.

E, no entanto, começou por ser do Sporting…

Pois, eu era do Sporting! Nasci ao lado do estádio e ia ver os jogos. O Sporting tinha aquela equipa famosa dos «Cinco Violinos»: Azevedo, Cardoso, Manuel Marques, Canário, Barbosa, Veríssimo, Jesus Correia, Vasques, Peyroteo, Travassos e Albano. Está a ver? Mas aquela simbologia de ver o meu país reconhecido em vez de me tratarem por espanhol marcou-me e, na verdade, sem dar por isso, passei a ser do Benfica. O que não invalida uma grande simpatia pelo Sporting. Mais tarde, também me divorciei. Era o que faltava que não pudesse mudar de clube. [risos]

Mas a mudança de clube foi imediata ou um processo mais longo?

Não mudei por opção, mas porque tinha de ser. Foi aos poucos. Ao longo de três ou quatro anos, sem dar por isso, eu era do Benfica. Mas nunca fui contra nenhuma equipa. Também em Viena tenho uma história com o FC Porto que me valeu uma certa simpatia pessoal que o presidente Pinto da Costa tem por mim.

Pode partilhar?

Na noite da final da Taça dos Campeões Europeus [que o FC Porto venceu por 2-1 ao Bayern, no Estádio do Prater, em 1987], tive um concerto no Burgtheater Viena e a seguir, em vez de cear com os colegas como era hábito, fui direto ao aeroporto festejar a vitória do FC Porto. Foi uma festa, com o Artur Jorge, o Pinto da Costa também apareceu lá eufórico. Aliás, ainda antes, estava eu a tocar no palco e nos bastidores iam-me fazendo sinais com o resultado do jogo.

Nessa noite foi portista?

Sim. Aliás, fui amigo pessoal do José Maria Pedroto. Telefonava-lhe quando o FC Porto jogava bem. Às vezes, estava muito tempo ao telefone com ele. Era um tipo muito inteligente e muito assertivo no que dizia. Lembro-me de ter ido ver um jogo ao Bessa a convite dele: houve um remate à trave e começámos a dissertar sobre aquilo. Ele dizia: «Um remate à trave é um remate mal feito. Se fosse bem feito, entrava.» E eu respondi: «Olhe que não. É mais do que isso. Um remate à trave é um golpe de sorte. Mais um pouco acima e a bola ia fora.» [Risos]

Acompanhou ainda mais de perto a final da Taça dos Campeões, em Viena, do Benfica, em 1990. Como recorda aquela decisão ao vivo no Estádio do Prater?

O Benfica perdeu 1-0 com o Milan. Uma desilusão aquele resultado. Mas eu tentava acompanhar qualquer equipa portuguesa que fosse à Áustria. Há jogadores como o João Alves que ainda hoje se lembram disso: «Eu era um miúdo, quando você lá apareceu no hotel…», disse-me uma vez. Jogadores do Sporting disseram-me a mesma coisa.

Mais recentemente, em 2005, chegou a fazer uma sinfonia para o «seu» Benfica. Como surgiu essa ideia?

Falei disso ao meu amigo João Malheiro, acho que foi ele quem falou ao Luís Filipe Vieira e acabei por fazer a obra. De cada vez que o Benfica marcava ouvia-se lá longe a sinfonia nos altifalantes. É claro que, no estádio, aquilo mal se ouvia com os gritos de golo. Mas há uma relação entre aquela música e o jogo: a atmosfera, a ansia, tudo isso está lá na música. Houve uma vez um palerma lá do Benfica, que eu nem sei o nome, e que me disse: «A sinfonia devia ter uma coisinha mais popular» [faz voz nasalada] Ele referia-se a meter lá um fado ou então uma música pop ou qualquer coisa assim. E eu respondi-lhe: «Isso é a mesma coisa do que dizer-me que o futebol ficaria mais interessante se se permitisse jogar um bocadinho com a mão…»

Hoje em dia, ainda se sente próximo do futebol, como quando tinha 10 anos e ia sozinho para o Campo Grande ver os jogos?

O futebol é o maior espetáculo do mundo. Sobretudo quando tem o estádio cheio. Mas, atualmente, para mim, é para se ver ao longe. Aquilo que se passa naquelas gaiolas onde metem adeptos é medonho. À distância, pode parecer engraçado, mas aquilo é algo alimentado por uma sociedade que sofre de taras.

E a sua paixão pelo jogo, permanece intacta?

90 e muitos por cento dos músicos que conheço adora futebol. Maestros, pianistas, violoncelistas… Acho absolutamente ridículo quando cá em Portugal há a mania de que os músicos não gostam de futebol. Que asneira tão grande!

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