Passaram-se mais de 24 horas e ainda deve haver adeptos de andebol com as mãos na cabeça.

A vitória do Benfica na Liga Europeia de andebol foi histórica e pode ser considerada o maior feito da história do andebol português.

A conquista é histórica, desde logo, porque nunca uma equipa portuguesa tinha conseguido vencer a segunda principal prova europeia.

O melhor resultado tinha sido alcançado pelo FC Porto, que em 2019 ficou no terceiro lugar, à frente dos dinamarqueses do Holstebro e atrás dos alemães do Fusche Berlim e dos vencedores, também germânicos, Kiel.

E fazemos já um parêntesis: historicamente, a Liga Europeia é uma prova que é conquistada por equipas alemãs.

Sabe a velha história do «são 11 contra 11 e no final ganha a Alemanha»?

Pois bem, na Liga Europeia de andebol, são sete contra sete e no final ganham quase (mas mesmo, quase!) sempre equipas alemãs.

E «quase (mas mesmo, quase!) sempre» significa: 16 vitórias alemãs, nos últimos 17 anos.

Dezasseis (16!) vitórias alemãs em dezassete (17!) anos.

Até ao passado domingo, apenas o Szeged (2014) tinha conseguido impedir que o troféu fosse para a Alemanha.

Mas a vitória do Benfica ganha ainda maior dimensão por ter sido conseguida diante do Magdeburgo.

O nome pode dizer pouco a quem não segue andebol internacional, mas o Magdeburgo é um gigante do andebol mundial e, muito provavelmente, a melhor equipa do mundo da atualidade.

Não somos nós que o dizemos: são os resultados.

«Esta Liga Europeia tornou-se numa Liga dos Campeões»

Para perceber a dimensão da vitória do Benfica, o Maisfutebol conversou com Fernando Pais. O antigo internacional A de andebol é o mais antigo comentador desportivo em atividade.

Desde que em 1980 decidiu deixar de jogar andebol para se tornar comentador da modalidade que faz parte do seu dia a dia desde os 10 anos, Fernando Pais construiu um percurso que fala por ele. Foram décadas na RTP e são já muitos anos na Sport Tv a comentar as principais competições internacionais de andebol.

E na hora de olhar para o feito do andebol do Benfica, Fernando Pais começa por fazer um enquadramento importante: «Esta Liga Europeia tornou-se quase numa Liga dos Campeões e isso torna ainda mais relevante a conquista do Benfica».

«Esta é a segunda competição mais importante do andebol europeu. Mas há dois anos a Federação Europeia (EHF) reduziu o número de equipas na Liga dos Campeões para apenas 18 equipas, o que fez com que “caíssem” para a Liga Europeia equipas muito, muito fortes», explica.

E não precisamos de pensar muito para perceber o que nos diz o comentador de 65 anos. Basta atentar no percurso do Benfica na prova.

A equipa orientada pelo espanhol Chema Rodríguez eliminou na terceira pré-eliminatória o Rhein-Neckar Lowen (Alemanha), semi-finalista da Liga Europeia da época passada; apurou-se depois num grupo que tinha o Nantes (França), semi-finalista da Champions da época passada, os alemães do Lemgo e fê-lo ficando apenas atrás dos dinamarqueses do GOG, com os mesmos pontos; e mesmo que não se queira dar muito destaque aos triunfos sobre o Toulouse (oitavos) e os eslovenos do Gorenje Velenje (quartos), na meia-final ficou para trás o Wisla Plock, presença habitual da Liga dos Campeões e que foi outro dos semifinalistas da Liga Europeia em 2021.

«Foi milagre atrás de milagre», resumiu Chema Rodríguez, ainda incrédulo, após a festa pela conquista.

«O Nantes, o Rhein-Neckar Lowen e o próprio Wisla Plock são equipas que podiam perfeitamente estar na Champions, competiram nesta Liga Europeia», enaltece Fernando Pais.

E o que dizer então do Magdeburgo?

«É a equipa que é a atual campeã do mundo de clubes. Ganhou [em outubro] o Super Globe», atira, sobre equipa contra a qual o Sporting também deixou ótima imagem nos oitavos de final, apesar da eliminação com um empate e uma derrota por um golo.

Ganhou o Super Globe, o campeonato do mundo de clubes no andebol, derrotando o Aalborg nas meias-finais e vencendo a final ao Barcelona por seis golos de diferença. Barcelona e Aalborg, campeão e vice-campeão europeu, respetivamente.

Em outubro, o Magdeburgo celebrou a conquista do mundial de clubes

«Além disso, estão com uma superioridade brutal nesta Bundesliga e vão ser campeões com antecedência, algo que é muito incomum na Alemanha devido ao equilíbrio do campeonato», acrescenta Fernando Pais, sublinhando: «Quem não sabe, pode pensar que se está a dar tanto valor a esta conquista para puxar pela equipa portuguesa, mas não é mesmo isso».

E quando a pergunta é se se pode mesmo afirmar que o Magdeburgo é a melhor equipa do mundo da atualidade, a resposta não deixa margem para dúvidas.

«Em dados palpáveis, não é exagerado dizer que o Magdeburgo lidera o ranking das melhores equipas do mundo. Esse ranking não existe, claro, mas uma equipa que lidera claramente Bundesliga [mais seis pontos do que o Kiel, que está nas meias da Champions] e ganhou o Super-Globe, tem de ser colocada no topo», analisa.

A consistência defensiva como chave para a glória

Conhecedor impar do andebol internacional em Portugal, Fernando Pais aponta a única razão para que a vitória do Benfica não tenha sido uma surpresa total na Europa do andebol: o percurso das águias na competição.

«Foi uma grande uma surpresa a nível internacional porque as equipas alemãs dominam tudo. As pessoas achavam que a experiência e a qualidade individual do Magdeburgo ia ser suficiente para vencer. Estamos a falar de uma equipa que tem mais do que dois jogadores de topo mundial para cada posição», introduz.

Mas logo em seguida, ressalva: «Por outro lado, o Benfica já tinha dado provas que podia vencer qualquer equipa. Tinha eliminado duas equipas alemãs e duas francesas, antes do Wisla Plock. E só por isso não terá sido uma surpresa total».

Depois, Fernando Pais destaca alguns jogadores da equipa do Benfica, que entende terem ajudado a elevar a qualidade do andebol das águias.

«O Lazar Kukic [vai mudar-se para o Din. Bucareste] neste momento era um dos centrais mais pretendidos da Europa. Benfica teve um conjunto de jogadores a um nível elevadíssimo. O Jonas Kallman tem quase 41 anos, mas é um profissionalão, leva o desporto a sério e está nos momentos decisivos», aponta.

E depois, deixa também rasgados elogios aos guarda-redes do Benfica.

«O Capdeville foi um dos jogadores portugueses que mais evoluiu nos últimos anos. Uma evolução que se justifica com a presença na seleção, mas também com o que o Benfica tem feito a nível internacional e com a disputa pelo lugar com o guarda-redes espanhol», defende.

Já sobre Sergey Hernandez, eleito MVP da final-four, os elogios vão ainda mais longe.

«Acredito que dentro de dois ou três anos, o Sergey será o titular da seleção espanhola. Já é presença habitual, e mais ano menos ano os dois titulares vão dar o lugar aos mais jovens e ele vai estar lá», acredita.

Outro espanhol que merece palavras elogiosas de Fernando Pais é o treinador Chema Rodríguez.

«Há muito mérito dele neste percurso. É alguém que foi jogador de topo, conhece muito bem a realidade ibérica, mas é um cidadão do mundo do andebol», diz sobre o antigo central, de 43 anos, que tem no currículo de jogador um Mundial, duas Ligas dos Campeões, além de quase uma dezena de títulos nacionais entre Espanha e Hungria.

«O Benfica era um clube que estava carente de títulos, e ele deu aquele toque para fazer acreditar os jogadores que seria possível», aponta ainda.

A verdade é que as mudanças da primeira para a segunda época de Chema Rodríguez são claras.

No ano passado, o Benfica ficou a dez pontos do FC Porto no campeonato e foi eliminado desta mesma Liga Europeia logo na primeira eliminatória pelos austríacos do Fivers.

Esta época, além da conquista da competição europeia, a diferença para o FC Porto passou para cinco pontos, além de ter sido a única equipa a derrotar o já campeão nacional.

«O Benfica está muito mais consistente este ano. Perdeu com o V. Setúbal e isso afastou-os da luta pelo título, mas no ano passado não eram uma equipa consistente. O Alexis Borges e o Rogério Moraes vieram dar a consistência defensiva que faltava ao à equipa, e no andebol, ganha-se a defender», nota ainda.

«O Benfica investiu bem e teve a compensação agora com esta conquista. Foi buscar jogadores que acrescentaram verdadeiramente valor», remata.

E perante a conquista da Liga Europeia, Fernando Pais não descarta que as águias possam receber um convite para jogar a próxima edição da Liga dos Campeões.

«Face a este resultado, a EHF poderia puxar o Benfica para a Champions, através da atribuição de um dos wild-cards. No ranking Portugal é o nono classificado, e se os responsáveis acreditarem que poderá voltar a haver um investimento forte na equipa, porque não?», questiona.

E convenhamos: uma vitória sobre a melhor equipa do Mundo não é um mau cartão de visita.