21 de Maio de 2003: F.C. Porto-Celtic Glasgow, 3-2

Parece que as aulas de Educação Física vão deixar de contar para a média dos alunos. É pena. Toda a gente sabe que estas aulas eram palco privilegiado para desenvolver o corpo e a mente. O corpo pelos vários exercícios que se iam fazendo. A mente pela capacidade de improvisação que se tinha de ter para arranjar desculpas para não as fazer. Juro que havia raparigas que menstruavam duas e três vezes por mês.

Mas o certo é que, para mim, as aulas de Educação Física eram uma espécie de terra do quase. Não se jogava voleibol, era uma coisa parecida. Não se jogava andebol, mas um desporto com regras similares mas com protagonistas com menos jeito. E até o corriqueiro futebol era uma arte diferente naquelas aulas.

Jogar à bola no recreio era jogar à bola. Porque só lá estava quem queria e tinha jeito. Nas aulas de Educação Física jogavam todos. E isso fazia emergir o líder. Aquele que pegava na sua equipa e escolhia os que ficavam na defesa, os que iam para a frente e ainda deixava o recado da praxe ao desajeitado que estava ali por obrigação: Tenta não atrapalhar.

Sei poucas coisas sobre José Mourinho, mas, mesmo gabando-lhe a capacidade de liderança, sei que ele nunca foi um destes sabichões que embaraçavam os colegas. E sei isso porque vi a final de Sevilha. Imaginam o prejuízo que teria sido se ele tivesse dito ao Marco Ferreira: Vai lá para dentro, mas tenta não atrapalhar.

O F.C. Porto ganhou aquela Taça UEFA porque fez um grande jogo, com muita capacidade de sofrimento. Porque o Derlei fez dois golos, porque o Deco esteve fenomenal, porque o Maniche correu quilómetros e porque o Marco Ferreira foi lá atrapalhar.

Não quero ser injusto. Marco Ferreira tem um currículo que fala por si. Passou por F.C. Porto, Benfica, Atlético de Madrid, entre outros. Marcou golos, fez jogos muito bons e chegou, inclusive, à seleção nacional. Mas lembrar o Marco Ferreira, para mim, é lembrar que ele foi lá atrapalhar naquele terceiro golo.

Antes de começar a escrever, estive a rever os momentos do jogo num vídeo do Youtube. Há lá um relato dessa jogada que é a prova viva do que eu digo. O narrador fala de um F.C. Porto que ataca, diz que há um passe frontal feito pelo Maniche e depois... Marco Ferreira aparece.

Marco Ferreira não chuta, não passa, não finta. Marco Ferreira não faz golo, não decide, não dribla. Marca Ferreira simplesmente aparece. Parece pouco, mas é muito. É tanto que com isso o guarda-redes dos escoceses largou a bola e depois o Derlei fez o mais fácil: fintar um jogador e rematar para a baliza. Golo do F.C. Porto.

Mérito para o passe de Maniche, mérito para Derlei que marcou. E mérito para Marco Ferreira que apareceu.

Há muito o hábito de chamar «arma secreta» a um jogador que sai do banco para resolver. Portugal adora vocabulário bélico misturado com futebol. Marco Ferreira em Sevilha não foi uma arma secreta. Foi a arma possível. Como aquele vaso que em desespero se atira à cabeça do ladrão que entra lá em casa. Não mata, pode até nem aleijar. Mas pelo menos atrapalha.

«Cartão de Memória» é um espaço de opinião/recordação acerca dos mais míticos jogos do século XXI, o tempo de existência do Maisfutebol. A ordem dos jogos reflete apenas a vontade do autor. Pode sugerir-lhe outros momentos através do Twitter.