Está a ver aquele momento em que um jogador, em boa posição, atira uns metros valentes por cima da trave? Acredito que o leitor dirá qualquer coisa deste género: dez pontos para o País de Gales. Eu não. Costumo dizer: esta é para a Tor!

Se não conhece Barcelos, é provável que não tenha percebido nada. E como Barcelos não é assim tão grande, o melhor é mesmo explicar. A Tor era a fábrica têxtil que ficava atrás do Adelino Ribeiro Novo. Naqueles tempos, quando alguém rematava assim, daquele lado, meio estádio dizia: esta é para a Tor!

Partindo do principio que vocês, aí desse lado, também gostam de futebol, é provável que tenham aquele estádio que marcou a infância. Calha a todos. O meu, por inerência ao local de nascimento, é o Adelino Ribeiro Novo. O velhinho.

Voltando ao início, mandar bolas para a Tor era, portanto, prática habitual. Fazia parte daquilo a que chamo “o espírito do Adelino Ribeiro Novo”. Um estilo que vai muito para lá do simples ato de jogar futebol. Que mistura bola com bancadas de madeira, areia nas balizas, bifanas, vinho e cobradores.

Um espírito que alguém meteu numa gaveta quando se decidiu levantar quilómetros de ferro e betão para o Euro 2004. Quando trocou castanhas por pipocas, bifanas por cachorro. Quando alguém decidiu que o guarda-chuva era uma arma letal e o torniquete o melhor amigo do homem.

O espírito do Adelino Ribeiro Novo é um pontapé para frente, para aliviar. Um «está apertado, atira para fora». Um «'tá a sentar, que já não chove!».

Mas é mais. É um par de chuteiras pretas e brancas. Ou só pretas, que já chega bem. É um papelinho ao intervalo para quem quiser ir à roulotte e voltar a entrar.

Quando o futebol saiu do Adelino Ribeiro Novo - e dos irmãos Mário Duarte, Calhabé, 1º de Maio ou Reboleira – também se perdeu o central que só dá porrada, o extremo que só vai à linha e cruza e o treinador que fala em contra-ataques em vez de transições rápidas.

Perdeu-se o cigarro no banco, o chupa-chupa do Carlos Manuel, o cobrador que é meu e não vou a mais nenhum. Já não sentimos o frio do cimento e as crianças, se já conseguem andar, então pagam!

Deixou de ver-se o tabuleiro do senhor que vendia chocolates. Disto, confesso, nem me queixo: para além de me tapar a vista, ainda me levou 200 escudos por um Lion. E eu de braço estendido à espera do troco.

Naquela gaveta, onde fecharam ainda os equipamentos pretos dos árbitros, os paus das bandeiras, fossem de que tamanho fossem, e os jogos grandes ao domingo à tarde, ficou o Adelino Ribeiro Novo.

Com ele, a claque em forma de banda musical, o balcão do café transformado em piscina de vinho tinto, onde as moedas colavam e não queriam descolar. O grito desenfreado «Gatuno!», em bis interminável, após o primeiro amarelo aos homens da casa.

Era pequeno? Deveriam era orgulhar-se da obra de quem conseguiu enfiar um campo de futebol entre um cemitério, uma serração e a Tor.

A Tor para onde iam as bolas. A Tor que também está fechada há uns anos. A Tor que também é um braço do velhinho campo.

O espírito do Adelino Ribeiro Novo é o espírito do futebol de outrora. Já não existe, mas quem viu não esquece. Talvez, como eu, recorde com saudade. Talvez não.

Mas uma coisa é certa: o Adelino Ribeiro Novo continua de braços abertos pronto para uma conversa sobre bola, com cerveja e tremoços à mistura. E sem precisar de assessor.

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