Expliquem-me lá o que é que correu mal entre o dia em que nos sentámos com Espanha a dividir o mundo e aquele em que alguém disse pela primeira vez «somos muito pequeninos»? 

Algo falhou, é certo, porque no meu livro de história ninguém citava o tamanho das fronteiras para lamentar os oitenta anos de domínio espanhol. Correu-se com eles. Ninguém se lastimou assim quando aquele terramoto destruiu Lisboa. Ergueu-se tudo outra vez. Nem me lembro de, por exemplo, Mário Soares ter feito esse desabafo enquanto fazia o vaivém liberdade-Caxias. Fez-se a democracia vingar.

Imagino, portanto, que tenha aparecido depois. Por causa do futebol, acredito. Talvez por algum pensador de bancada, a merecer uma placa ao «filósofo desconhecido».

«Somos muito pequeninos» é o «está fresquinho» do elevador. O «não somos nada» de um funeral. O «eles só passam as imagens que eles querem» do Big Brother. É como o vestido preto das senhoras: nunca compromete.

E resiste ao tempo. Moderniza-se. Ganhe-se uma, duas, três vezes. Ao primeiro deslize alguém há-de dizer: «somos muito pequeninos».

Porquê? Há duas versões. A mais comum, por lamento. A mais ousada, por gabarolice. Para dizermos que, no fundo, somos os melhores. Não sou eu que digo, atenção. É Pessoa. Escreveu ele que «grande é a poesia, a bondade e as danças, mas o melhor do mundo são as crianças». Crianças que são, claro está, pequeninas. Chegaram lá?

Adiante.

Foi assim em 2000 quando se tentou fazer parecer que a mão de Abel Xavier contra a França foi só uma ilusão de ótica.

Foi assim em 2002 quando se tentou uma colagem a Espanha e Itália para fazer acreditar que o problema na Coreia foi o árbitro.

Foi assim quando se jurou a pés juntos que Scolari não tentou agredir Dragutinovic. Tudo para defender o menino.

«Vergonha! Somos muito pequeninos!». Gritem em coro.

Do mal, o menos, em 2013 vejo um «somos muito pequeninos» bem usado. Falo, naturalmente, de Joseph Blatter e Cristiano Ronaldo.

Somos, de facto, pequeninos para perceber o nível e o requinte daquele humor. Somos, pois claro, pequeninos para apreciar a qualidade da imitação. Para interpretar as entrelinhas. Para captar a mensagem sem a desvirtuar por pura maldade ou ignorância. Somos pequeninos, o que quer?

Ponto importante: fujo a sete pés de quem acha que porque Blatter gozou com Ronaldo ele já não ganha a Bola de Ouro, não vamos ao Mundial, vem aí o segundo resgate e o Carrilho e a Bárbara não evitam o divórcio litigioso. Só para citar os verdadeiros problemas do país.

Mas admito que, depois da mão de Abel Xavier, da expulsão de João Vieira Pinto ou da agressão de Scolari, é reconfortante ver Portugal bater-se, finalmente, por uma causa em que tem razão. Isso, não posso escamotear, é mérito de Blatter.

Mas deixe-se o «somos muito pequeninos». Tal como corremos com os espanhóis, reerguemos Lisboa e fizemos a democracia vingar, a resposta virá pela prática. Alguém duvida que Ronaldo é capaz?

«Cartão de Memória» é um espaço de opinião/recordação que se debruça sobre jogos, equipas, personagens ou momentos que fizeram a história do futebol português e internacional, sobretudo no sec XXI, com pontes para a atualidade. Pode questionar o autor através do Twitter.