A bola tensa. Quase oval depois do impacto de um pé esquerdo. Vai demasiado alta para quem fica a meio-termo, ali à frente da baliza, de um e de outro lado.

Olham para o ar, onde ela vai. Não oferece perigo, pensam.

Sono stanco, que vá!

pensam outra vez. 0-1, 0-2, 1-2 e a bola a fugir de novo para o segundo poste, para lá deles. Longe das mãos do guarda-redes. Para terra de ninguém. Que vá!

O melhor avançado é o mais astuto. Aquele que percebe antes dos adversários se a porta abre para dentro ou para fora. Aquele que adivinha onde a bola vai cair assim que sai do companheiro. Antes que a própria se denuncie.

A bola tensa. Oval. E a passar por uma defesa inteira. E, lá bem no meio, onde estavam todos, alguém soma força, acrescenta-se atrito, efeito e vento contra, e o resultado chega-lhe antes que se desenhe os contornos daquela lâmpada que simboliza ideias nos bonecos aos quadradinhos.

Il Gladiatore arranca, corre entre as armadilhas e salta para a bola. Acerta-lhe no ar, em voo, como um deus da arena. Em câmara lenta, como são todos os momentos de magia.

A multidão explode, enlouquecida, fervendo de êxtase, enquanto a bola continua o seu curso até às redes. Das bancadas, chega o seu nome. Gritam a sua canção.

Il Re di Roma ergue os braços a incentivar a festa, a reclamar a aclamação merecida depois de ter misturado tanto suor com o pó que pisou. Depois de ter ficado com tantas cicatrizes em anteriores batalhas.

Mais uma vez. Outra vez. Um barulho ensurdecedor cresce das catacumbas. O Olímpico enche-se de orgulho da sua lenda, que começou a ser criada por Boskov há 22 anos.

Mais de duas décadas em tons de amarelo e grená passam novamente pelos milhares de olhos nas bancadas. Um golo. Dois golos. Cem golos. Duzentos golos. Duzentas explosões. Milhares de pés aos saltos sobre o cimento, fazendo tremer as fundações da arena. Totti! Totti! Totti!

Se parli della Roma
tu pensi a Francesco
la maglia la bandiera de ' sta bella città.
c'è solo un capitano e gli devi rispetto
Francesco non si tocca mai!
Totti goal!Totti goal!

l'altri te vonno e tu je dici de no!
Totti goal! Totti goal!
Perchè sei Roma e senza te nun ce sto!


Talento, classe. Rasgo. Pivot de passes de rotura. Trequartista e fantasista. Goleador à medida que envelhece. Golos na passada. Pé esquerdo. Pé direito.

Chapéus de fora da área, insultos, autênticas bofetadas aos melhores guarda-redes do Calcio. Livres diretos. Penalties em força. Panenkadas. Uma loucura de penalty de calcanhar, que corre mundo. E milhares de toques e passes com essa parte do pé, de todos os géneros e feitios, inspirados noutro génio, um tal de Giuseppe Giannini, também artista na mesma arena.

Totti corre, em fúria, a apontar para mais um assalto à baliza. A cada golo fica mais perto da sua rudis, a espada de madeira onde será gravada a sua liberdade. Mas, para já, não a reclama. E a multidão não a oferece. Estão ligados, querem-se assim, enquanto o sangue ferver nas suas veias. Enquanto jogar cada jogo como o último da sua vida.

Ave, Francesco, morituri te salutant!

--
«ERA CAPAZ DE VIVER NA BOMBONERA»    é um espaço de opinião/crónica de Luís Mateus, sub-director do Maisfutebol, e é publicado de quinze em quinze dias. Pode segui-lo no    FACEBOOK    e no    TWITTER   . O autor usa a grafia pré-acordo ortográfico.
--