Sejam muito bem vindos à aula de Vítor Pereira. Fala-se de futebol, de táticas, daquilo que são as ideias do treinador que levou o FC Porto aos títulos nacionais de 2012 e 2013. Os copos na mesa da esplanada são os jogadores, as garrafas passam a ser os adversários e o Maisfutebol, nesta grande entrevista, embarca numa viagem por uma das mais estimulantes mentes do nosso futebol. Um prazer.

PARTE I: «Pedi desculpa ao Jesus por lhe ter chamado egocêntrico»

PARTE II: «Tinha de parar, a adrenalina de ser treinador é uma droga»

PARTE III: «No golo do Kelvin eu estava a pedir para ele cruzar»

PARTE V: «Estive duas vezes muito perto de clubes ingleses»

PARTE VI: «Na Alemanha desci à terra e percebi que não faço milagres»

Maisfutebol – O que ganha uma equipa que joga com três centrais? O Sporting e o Benfica estão a jogar assim, o Sp. Braga e o FC Porto já o fizeram pontualmente também.

Vítor Pereira – Isso veio para ficar. Na China jogávamos em 3x4x3 ou em 3x5x2, por vezes em 4x3x3. Na passada semana estive num webinar e apelidei esta nova estrutura de «estrutura transformer». O que se está a perceber é que há uma tendência para vivermos num futebol com as linhas mais coordenadas e os espaços mais reduzidos. Perante isso temos de reinventar-nos do ponto de vista ofensivo. Se não conseguirmos desbloquear determinados comportamentos defensivos, então temos de ir à procura de soluções, de nuances novas. Essas estruturas de largura total dão-nos a possibilidade de ter um trunfo estratégico.

MF – Ou seja, mudar várias vezes durante o mesmo jogo?

VP – Isso mesmo. Podemos começar com um 4x3x3 teórico e transformá-lo noutra coisa ao longo do jogo, ofensiva e defensivamente, em função dos espaços que queremos controlar e atacar. Isso para mim é o futuro. Podemos montar e desmontar a estrutura durante o jogo. Essas estruturas com três centrais e depois dois laterais/alas de largura total não são fáceis de controlar.

MF – Que problemas novos colocam aos adversários?

VP – Imaginemos que a minha equipa joga normalmente em 4x4x2 clássico e vou jogar contra uma equipa em 3x4x3. Essa equipa, se bem trabalhada, terá sempre a possibilidade de atacar com cinco homens contra quatro defesas: dois alas, dois avançados interiores e um ponta-de-lança. Se nós não desmontarmos a nossa estrutura de 4x4x2 para controlar a largura, não há hipóteses. Temos de criar dinâmicas que nos permitam equilibrar os espaços e os momentos, também em função do adversário. Por isso, para mim, as estruturas serão ferramentas estratégicas para lidar com o jogo.

MF – Por isso falar em «estrutura transformer». Tem de estar preparada para mudar várias vezes.

VP – Tem de ser. Se eu tenho o tal 4x4x2 para jogar contra um 3x4x3, que coloca cinco homens na frente, sou atraído num lado e de repente a bola entra no outro… O meu ala do lado contrário tem de se juntar à linha de quatro defesas e formar um quinteto, de outra forma terei sempre problemas. Há uma série de tendências evolutivas interessantes. Ao ver a Atalanta, por exemplo, vejo uma equipa muito pressionante. A tendência é essa, mexer na estrutura e tornar a equipa mais forte na pressão. Para fugir à noção de linhas que temos na nossa cabeça, a estrutura clássica. As variações vão acontecer sempre, a estrutura vai montar-se e desmontar-se ao longo do jogo. Veio para ficar, as «estruturas transformers» são o futuro. A intenção é criar novos espaços e, ao mesmo tempo, controlar os espaços explorados pelo adversário.

MF – O futebol mudou muito. Também nos aspetos táticos.

VP – No passado a maior parte das equipas tinha o objetivo de chegar à linha de fundo e cruzar para a referência ou referências que tinha na área. Jogo exterior e cruzamento. Hoje vejo uma chegada diversificada à área contrária. Com passes atrasados, passes cortantes, aquele passe forte entre a linha defensiva e o guarda-redes. Com jogadores rápidos. E também colocar jogadores de outras linhas a finalizar. Temos sempre de ir buscar o que é bom a todos os lados. Falo novamente da Atalanta: pode melhorar? Pode. Mas tem um jogo espetacular, vejo-o do princípio ao fim com gosto. O Leeds também. Às vezes fazem trocas que não me fazem sentido, mas têm outras coisas excelentes. Como vamos criando organizações defensivas mais apuradas, podemos aparecer na outra área com opções inesperadas. Com jogadores que ninguém espera. Podemos formar jogadores capazes de desempenhar mais de uma função. Um lateral direito pode treinar e jogar a ala direito, central do lado direito, a médio-centro sobre a direita. Quando me chegar às mãos vou poder fazer o que quiser dele, vai entender o jogo.

MF – Quando esteve na formação do FC Porto o pensamento não era esse?

VP – Não era. O pensamento era replicar em todos os escalões a mesma estrutura. Hoje penso de forma diferente. Viver diferentes funções torna o jogador muito mais apto. Essa é outra tendência. Podemos falar do guarda-redes. Esta nova regra, que permite bater o pontapé de baliza para dentro da nossa área, permite novas nuances. Se tivermos um guarda-redes forte no passe, pode ser importante. Vi uma equipa japonesa que colocava o guarda-redes a construir ao lado do central e era ele que tinha o maior número de passes de rotura. Uma coisa impressionante. Os centrais entregavam-lhe a decisão. No futuro o guarda-redes será parte estratégica do jogo ofensivo. Isso pode contrariar a pressão alta, porque hoje poucas equipas esperam atrás.

MF – O Vítor já falou também dessa pressão forte. Mas fazer isso 90 minutos é possível?

VP – Tenho pensado muito sobre isso. Acredito em timings. Fazer pressão muito alta durante alguns períodos e depois recolher o bloco e sair em transição durante determinados minutos. Criar esta diversidade no jogo vai obrigar o adversário a tentar adaptar-se. Isso anda aqui na minha cabeça e tem-me ocupado este período. É por isso que o futebol é tão apaixonante. Pensamos que sabemos tudo sobre o jogo, mas não sabemos.

MF – Numa equipa que treina pouco, nos escalões não profissionais, o mais fácil é jogar num 4x3x3 para encaixar mais facilmente. Estas estruturas mais simples tendem a desaparecer?

VP – Em vez de procurar encaixar eu procuro desencaixar. Ouço muito isso: as equipas estão encaixadas. Quem quer ganhar, o objetivo é desencaixar. Para isso promovemos as tais nuances e criamos sub-dinâmicas para libertar espaços. Ameaço num lado e liberto do outro. Quando vejo um jogo estou sempre a pensar nisso: como vou desencaixar isto? Atrair de um lado e ir pelo outro é uma boa sub-dinâmica, mas um jogo não pode viver só disto. Há equipas que baixam os dois alas e jogam com uma linha de seis a defender. Temos de conseguir perturbar isto. E desencaixar (risos). É assim que eu penso o futebol.

MF – O desafio também é ser capaz de passar isso à equipa, mesmo durante os jogos. Para isso precisa de um ou dois elementos que sejam a sua extensão lá dentro?

VP – Depende do nível. Eu sou muito de pormenores, mas em determinados clubes percebi que tinha de ir devagar e simplificar as coisas. Na China, no primeiro ano, jogávamos em 4x3x3. O que fiz para diversificar? Uma coisa simples. Um dos alas fazia de segundo ponta-de-lança e o lateral desse lado tinha liberdade para atacar. Era uma das sub-dinâmicas ofensivas. Defensivamente, um dos nossos alas podia fazer o quinto homem a defender. E no papel era um 4x3x3. Isto são as sub-dinâmicas. Com um nível alto e jogadores cultos taticamente podemos fazer tudo. É isso que permite ver o João Cancelo a desempenhar as mais variadas funções no Manchester City.