Campeão em Portugal, na Grécia e na China; vice-campeão na Turquia; despromovido na II Bundesliga. A etapa alemã na carreira de Vítor Pereira foi um «erro estratégico». Não só por ter corrido mal, mas por ter estado envenenada desde o princípio pela instabilidade do 1860 Munique. Um tratado de lucidez nesta grande entrevista ao Maisfutebol.

PARTE I: «Pedi desculpa ao Jesus por lhe ter chamado egocêntrico»

PARTE II: «Tinha de parar, a adrenalina de ser treinador é uma droga»

PARTE III: «No golo do Kelvin eu estava a pedir para ele cruzar»

PARTE IV: «3x4x3? As 'estruturas transformers' vieram para ficar»

PARTE V: «Estive duas vezes muito perto de clubes ingleses»

Maisfutebol – Noutra parte da conversa falava de «erros estratégicos» na gestão da sua carreira. Referia-se à passagem pela Alemanha?

Vítor Pereira – Sim, claramente. Foi um erro estratégico. Estava a fazer um caminho para chegar a determinada forma de jogar que me agrada e no Munique 1860 foi impossível. Tive a sorte de fazer a minha formação com o professor Vítor Frade no FCDEF. Ele desafia-nos constantemente. É uma pessoa que desperta em nós a crítica, a reflexão, não é fácil acompanhar o raciocínio dele. Mas depois as coisas lá se juntavam e batiam certo. A minha tese de mestrado foi sobre o Barcelona do Johan Cruyff. Todos nós temos uma ideia de jogo predileta. A minha é essa. Podia mencionar o AC Milan do Arrigo Sacchi, já falei também do São Paulo do Telé Santana. Ou seja, no nosso cérebro já está definido o que é um jogo de qualidade. Outros preferem uma equipa a defender bem, a defender muito, e acham aquilo bonito. Somos todos diferentes, é normal.

MF – A sua ideia de jogo não era aplicável no 1860 Munique?

VP – Na formação do FC Porto, onde cresci, o pensamento era este: atacar, dominar, transição defensiva agressiva, ter bola, não deixar o adversário chegar à nossa baliza. Nós temos de estar sempre preparados para abafar, só em último recurso é que vamos defender. Ora, se nós crescemos com esta forma de jogar, que é a forma de jogar que nos dá prazer, e depois chegamos à Alemanha e o nível não tem nada a ver… os erros defensivos eram tantos que eu tinha de passar a maior parte do tempo a trabalhar defensivamente. É contranatura. Eu, defensivamente, organizo a equipa facilmente. É o mais fácil. Difícil é organizar ofensivamente e sempre em condições de anular as iniciativas do adversário. Mas também dou mérito a quem compacta a equipa e não permite ao adversário entrar. Agora, o futebol de especulação não é o meu futebol. Estar à espera de um erro e ir à frente fazer um golo. Não. Estive quatro meses na Alemanha e acabei aquilo sem identificar quais os jogadores que me podiam dar mais garantias.

MF – Foi uma desilusão.

VP – Desci à terra e percebi que não posso fazer milagres. Quando os vi a jogar a primeira vez percebi que eles tinham dificuldades. Mas pensei que conseguia virar aquilo de pernas para o ar e fazer um milagre. Mas precisava de mais tempo e de estabilidade. Sem estabilidade não há hipóteses. Deixamos de nos preocupar com o jogo e preocupamo-nos com o ambiente e outras coisas. Até aquilo acabar. Corri esse risco e levei a maior lição da minha vida. Foi um erro estratégico de carreira, importante para perceber que é essencial escolher um clube que tenha estabilidade diretiva.

MF – Estagiou com o Guardiola antes ou depois da Alemanha?

VP – Acho que foi antes do Olympiakos, 2014. Estive só lá uma semana. Fui tentar perceber o raciocínio dele. O Pep tem um raciocínio rapidíssimo. Fui almoçar com ele e não comemos nada. Os copos, os pratos e os talheres já eram um campo de futebol. (risos) Acompanhar o raciocínio dele não é fácil. Apanhei duas ou três pessoas na vida cujo raciocínio não é fácil de seguir. O Pep Guardiola e o Vítor Frade são duas dessas pessoas. É gente que está à frente.

MF – O Barcelona do Guardiola é uma equipa repetível?

VP – Difícil. Aquilo foi ao forno durante uns anos valentes. O próprio Guardiola disse que aquele jogo associativo às vezes o chateava. Para quem gosta é uma maravilha, mas admito que haja muita gente que não aprecia. O Jupp Heynckes no Bayern praticava um jogo radicalmente oposto, direto e agressivo. O Guardiola chegou lá e tentou-se adaptar, queria aproveitar um jogo mais rápido para chegar ao golo. Curiosamente, o City teve problemas quando ele tentou jogar um jogo um bocadinho diferente. Começou a expor-se muito mais a transições, com as perdas de bola, e nem parecia uma equipa do Guardiola. Acelerações, roubos de bola, perdas, não lhe correu bem. Depois até li numa entrevista o Pep a dizer que queria voltar às origens. Se arriscamos e perdemos a bola sem critério, deixamos de controlar o jogo. E depois as outras equipas também têm nível.

MF – Como é que são as conferências de imprensa na China? Realizam-se antes e depois dos jogos como aqui em Portugal?

VP – Duram três minutos, no máximo (risos). As pessoas, quando eu estava no FC Porto, diziam que eu tinha problemas em comunicar. Mas isso não era verdade. Eu, a falar sobre futebol, sou assim comunicativo desde sempre. Eu hoje ‘brinco’ nas conferências de imprensa, só respondo ao que quiser e da forma que quiser. Naquela altura, enfim, vinha de treinar o Santa Clara e comecei a levar com cascas de banana por todo o lado. Sentia-me como o tipo que é detido (risos). ‘Tudo o que disser poderá ser usado contra si’. Reflito muito sobre o futebol e gosto de estar sempre à frente.

MF – Na China não era assim.

VP – Nada, nada. Não há perguntas polémicas, são proibidas. Nem posso responder de forma polémica ou falar sobre árbitros. O pensamento deles é este: se estamos a vender um produto não podemos falar mal dele. Na Grécia, o Olympiakos tinha um bom departamento de comunicação, mas nós íamos jogar ao AEK ou ao PAOK e na sala de imprensa tínhamos a maioria dos jornalistas afetos ao clube da casa. São ambientes complicados, há o jornalismo de cachecol e bandeira. Na Turquia é a mesma coisa e na Arábia ainda é pior. Muitos deles nem são jornalistas, são miúdos que vão para as salas de imprensa. Entram como jornalistas e não são jornalistas. Hoje tenho experiência para lidar com os Media, com qualquer tipo de abordagem. Na China demorava mais a viagem para o estádio do que a conferência de imprensa.