Soutiens ardem ainda para lá das linhas de cal. Cabelos compridos e tranças misturam-se com ganga e olhos semicerrados, cabeleiras afro dispersam-se entre barbas, cabedal e tatuagens. O mundo encheu-se de cores e cheiros a novo, protestos e roturas, e ensurdeceu com gritos pela liberdade. Os Beatles e Elvis apareceram e evaporaram-se, cantou-se Pink Floyd, Zeppelin e Stones, dançou-se break e acid. A música tornou-se industrial, endurecida com a juventude. Já em campo, uma squadra azzurra ainda em tons de cinzento enche os tiffosi de orgulho. Os heróis olham em frente e escutam os sussurros de Rigoletto, que lhes dá leveza à alma e ritmo para a vitória: La donna è mobile, qual piuma al vento, muta d accento, e di pensiero...

Um por um estão ancorados à terra, presos a uma amarra que só os deixa gravitar alguns metros. Aquele elástico gigante invisível só se solta uma ou duas vezes. Mais que isso e tem de ser substituído para não haver acidentes. Plac! Do lado de lá caem na ratoeira. O erro tem de ser aproveitado. Plac, Plac! Som de metal a bater, como num avião, ainda com o alarme dos cintos aceso, assim que se aterra em segurança na pista. Um por um disparam em legião, prontos a cumprir por fim o objectivo, recolher a bagagem e voltar para casa. Goooool! Uma voz tão desgastada e cheia de espinhos como a de Paolo Conte acusa em eco das bancadas: «Catenaccio, catenaccio!» O velho Herrera dá três voltas no túmulo, sem perceber o que aconteceu desta vez.

Incrível esse calcio em que nada é complicado e tudo está longe de ser simples. Esse jogo único, que vive para si e só pensa em si, consciente de que mais importante do que marcar é não sofrer. O calciatori é mais qualquer coisa do que todos os outros. Só guarda-redes tão sobre-humanos como Buffon estão na baliza. Os centrais são banhados em betão antes de entrar em campo. Desdobram-se laterais em extremos porque há que usar as alas. O «10» não existe por si, reclama-se que marque golos como Baggio ou ajude a evitá-los na pele de Pirlo. O ponta-de-lança, capocannioniere, chega ao fim da carreira com mãos e tronco a tremer, obrigado a manter-se concentrado de 90 minutos a 90 minutos, não fosse falhar a única oportunidade criada. A Itália, raramente a melhor equipa em campo, ganha no relvado, mas perde nas bancadas.

O velho Helenio não podia estar à espera. O ferrolho que fechou o Inter tornou-se sistema italiano durante décadas. «Uma grande exibição dura um dia, um bom resultado para sempre», dizia o argentino, quando o massacravam com o cinismo do seu jogo. O relvado dividia-se em tabuleiro de xadrez, e as peças brancas atraíam as pretas para armadilhas com alçapão. Grandes equipas derrubadas protestavam, as falhas alimentavam o ódio. Quem é que gosta de ser enganado? No entanto, com o tempo, quase todos querem ser italianos. Portugal tornou-se cínico nos anos 80 e foi derrubado pelo catenaccio grego em 2004. Surpreendentemente, até o Brasil escavou trincheiras no seu meio-campo para ser campeão do mundo em 1994.

Na altura do Europeu português já nem a squadra azzurra acredita no passado. Algo começara a mudar: a mentalidade, sempre rastro da história, quase meio século depois. Embora com princípios antigos, a Itália já não espera pelos outros. As suas equipas universalizaram-se depois de Bosman, tornaram-se livre pensantes. Inter, Roma e Milan não estão espartilhados pelos elásticos, apesar de ainda constrangidos por anos a fio de obrigações. O calcio já não é bem calcio. Talvez seja futebol, com regras iguais para todos. Que prazer dá ver Pirlo ser maior que todos, estratega altruísta e humilde, a conduzir uma Itália talentosa, em ataque contínuo. Deixem lá Herrera descansar em paz!

«Era capaz de viver na Bombonera» é um espaço de opinião da autoria de Luís Mateus, editor do Maisfutebol, que escreverá aqui às terças e sextas-feiras