A morte é ensurdecedora. De tal forma que um sorriso, inofensivo, parece pecado. Um simples rasgar dos lábios para um dos lados, incontrolável, traz consigo o sabor da desonra. E olhamos para baixo, porque só o chão pisado não se ofende. Os silêncios vários dão as mãos e entrelaçam os dedos, fortalecendo o luto. As recordações chegam-nos em câmara lenta, ou pior, em super slow motion, a preto e branco, e dão-nos socos no estômago como se preparassem o KO para um gancho de direita. Sem tréguas. A música perde o ritmo, faz-se tema clássico para abrandar o tempo, para que retenhamos as imagens num eco intemporal.

Apertei-lhe a mão duas vezes, antes e depois de uma conversa com aspiração a entrevista, e senti-me logo pequeno. Mais pequeno ainda do que quando olhei para baixo, de onde o que é importante se mede com altímetros, de um avião a que tinham dado o seu nome. Mais pequeno depois do que antes; ele enorme, ainda maior, entretanto, como se tivesse revivido naquelas perguntas a corrida cega, pueril, para ter a camisola do señor Alfredo. Di Stéfano. E a Taça? Qual taça? Talvez a trouxesse ainda vestida por debaixo de casaco e pullover de sessentão; nunca a abandonara, aquela que era a camisola do seu herói. Ponto final, silêncio! Não apressem o tempo!

Estou entre os muitos que não o viram jogar, em direto ou em diferido. Pior, nasci demasiado tarde sequer para poder conviver com ele profissionalmente, apesar da sua omnipresença em todos os tijolos da velha Luz. Mas sou também daqueles, que são cada vez mais, que ouviram os pais contar-lhes os feitos de super-homem. Esse é que era, não era como os de hoje. E os deste hoje também são os de ontem, que o tempo avançou. E talvez também de amanhã. E nunca duvidei de nada. Nunca coloquei em causa o fim da raça dos semi-deuses, que tinham dado lugar à humanidade, aos sem-jeito, a novas gerações de talentoexcluídos. Os minutos que nos chegavam depois, ainda por colorir, mordidos pelo tempo, de golos, jogadas e das palmadinhas nas costas dos rivais, provam-no. Sim, porque a genialidade vinha acompanhado por um pedido de desculpas. Não levem a mal, rapazes. Assim queria o gentleman dizer!

Eusébio acabou quando comecei, e o que se seguiu foram ondas de choque de tantas pedradas que atirou num país feito-charco, pequeno e de poucas referências, a quem só restava a boca escancarada de espanto ao ver quem caía no seu caminho. O super-Real, a Coreia dos três golos de vantagem, o Brasil e Pelé. Aquele golo ao Escrete, em que surge de nenhures, para lá da imagem televisiva onde ninguém está, e de perna armada desde as costas, também merecia o grito de puta-que-pariu que o brasileiro Carlos Alberto soltaria quatro anos depois, assim que marcou o primeiro golo do século (antes de Maradona) e se sentiu campeão do mundo. E merecia que todos nós nos atirássemos das cadeiras que agora ocupamos, em êxtase, como se partilhássemos ainda com ele esse momento único, de magia pura.

Sem os gritos dos golos, sem as jogadas em cada domingo, a memória começa irremediavelmente a trair-nos. Começamos a duvidar... Não, duvidar é demasiado. Começamos a diminuir a intensidade da lenda em nós, a sua grandiosidade. E os outros, os de agora, também ambicionam a imortalidade, superando-se em cada momento. E reivindicam espaço na nossa cabeça, o seu próprio trono, que dificilmente terá lugar para todos. Felizmente, Old Trafford parou. Bernabéu comoveu-se. O Real enviou El Butre em viagem-relâmpago. Pelé chamou-lhe irmão, Maradona fez vénia à Pantera de Moçambique. Banks e Stepney recordaram-no. Rui Costa e João Pinto confessaram o que lhe deviam. Ronaldo e Pepe choraram-no. Fez capa em todos os jornais. The portuguese legend has died. Lisboa saiu à rua para se despedir. Uma última vez. Dezenas, depois centenas, milhares. O dilúvio chorou-o, num dia triste, cinzento-escuro, quase negro, tão próprio de um adeus doloroso. Porque só a dor nos impede de sentir a chuva.

Eu, simples mortal, que nunca farei nada que chegue aos seus calcanhares, digo-lhe adeus. Espero que as palavras soem como lágrimas, as frases sejam como tabelinhas, com Simões ou Torres, e o isolem para mais um golo. Que os pontos de exclamação saiam como remates ao ângulo, com o corpo inclinado como mais ninguém fazia. E, um dia, quando também eu for pó, e igual a todo o pó que existe, talvez possamos ambos ser pisados por jogadores tão grandes quanto ele. Até sempre, King!





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«Era capaz de viver na Bombonera» é um espaço de opinião/crónica de Luís Mateus, sub-director do Maisfutebol. Pode segui-lo no FACEBOOK e no 
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