Chama-se Francisco Marcos, tem 78 anos e foi consagrado em janeiro na mais fina elite do futebol nos Estados Unidos: no próximo dia 4 de maio vai entrar no Hall of Fame do soccer.
Mas quem é afinal este português?
Em traços gerais, criou as bases da USL: a United Soccer League, que é o segundo campeonato na pirâmide do futebol norte-americano.
Basicamente, e de uma forma simplista, a MLS é a primeira divisão e pertence à Federação, a USL é o campeonato da segunda e terceira divisões, e está nas mãos de privados. Foi este campeonato que Francisco Marcos semeou – ainda nos anos oitenta, numa altura em que o futebol nos Estados Unidos era uma coisa de nicho – e que durante as duas décadas seguintes desenvolveu, com uma dedicação que agora acaba premiada pelo Hall of Fame.
«Casei-me muito tarde, porque a minha primeira esposa foi a Liga. Casei-me com a minha mulher, a Beverly, já com 57 anos. O meu filho mais velho já tinha nessa altura dez anos. Tenho ainda uma filha e tenho dois netos: o mais velho é sócio do Sporting desde os dois dias, o segundo nasceu hoje e estou à espera da certidão de nascimento para lhe dar o mesmo destino.»
Sim, Francisco Marcos é também um apaixonado pelo Sporting. Mas já lá vamos. Antes disso, convém mergulhar nesta história desde o início.
«Nasci no Bombarral, estudei como aluno interno no Colégio Nun’Álvares, em Tomar, e emigrei para os Estados Unidos quando tinha 15 anos. Viajei no dia 3 de dezembro de 1961, precisamente o dia em que Nehru, e a Índia, invadiram Goa.»
O pai dividia-se, antes disso, entre a pensão no Bombarral da qual era proprietário e o trabalho no campo. Eram tempos difíceis, no Portugal pobrezinho de Salazar, sempre com perspetivas curtas, o que o levou a entrar num barco, em 1959, para os Estados Unidos.
«O meu pai emigrou para ir trabalhar no duro, para angariar fundos para fazer as coisas que queria fazer em Portugal. A minha mãe já tinha falecido e ele casou outra vez. Foi com a minha madrasta, que conseguiu um visto para ser cozinheira do embaixador do Brasil para as Nações Unidas. Mas o meu pai não foi um emigrante típico, não ficou lá a vida inteira. Ficou apenas 14 anos. Só queria fazer dinheiro para investir em Portugal», recorda.
«Eu nessa altura fiquei cá e só fui dois anos depois. O meu pai deu-me duas opções: acabar a escola cá e seguir para a universidade, passando as férias na casa dos avós, ou ir viver com eles para Nova Iorque. A escolha foi óbvia, emigrei. Tinha um grande espírito de aventura, Portugal era o que era na altura e estava a começar o problema da Guerra Colonial.»
Por isso, no dia 3 de dezembro de 1961, partiu para Nova Iorque. Em janeiro de 62 já estava a estudar no liceu norte-americano e em dois anos completou o ciclo liceal.
«Já tinha três anos de inglês, cinco anos de francês, tinha estudado latim e por isso a adaptação acabou por ser fácil. Para além disso, em Nova Iorque há muitas colónias e, se uma pessoa não fala uma coisa, pode falar outra. Ficamos instalados no Greenwich Village, na baixa de Manhattan, um bairro que era italiano, português e irlandês. Era o bairro dos night clubs. Lembro-me que foi lá que vi atuar pela primeira vez o Paul Simon», conta.
«Nunca tive hipótese de fazer outra coisa que não estudar. Em janeiro de 64 graduei-me no Liceu e até setembro trabalhei no Saint Clare’s Hospital, para angariar fundos para ir para a universidade. Era assistente da pessoa que fazia os registos dos médicos.»
O golpe de sorte que lhe mudou a vida para sempre
Foi nessa altura que algo de verdadeiramente decisivo aconteceu na vida de Francisco Marcos. Quase por acidente, sem nada que o fizesse prever.
«Diz-se que às vezes a sorte se constrói, mas no meu caso foi mesmo sorte.»
Francisco já era um apaixonado por futebol, um amor que o tinha apanhado na infância, a ver o Sporting dos Cinco Violinos.
«O Carlos Gomes e o Travassos eram os meus ídolos», conta. «Jogava todos os dias no Largo da Igreja e por causa deles só queria ser guarda-redes ou 10.»
Quando emigrou para os Estados Unidos, portanto, quis continuar a divertir-se e tratou de integrar uma equipa da comunidade portuguesa que jogava na Liga de Nova Iorque.
«Um dia, um amigo convidou-me para ir à reunião de inverno nessa Liga de Nova Iorque. E por acaso, durante a reunião, o presidente perguntou se conhecíamos algum jogador que quisesse fazer parte da equipa de uma universidade, porque ele era amigo do treinador», diz.
«Eu levantei a mão e três semanas depois estava admitido na Hartwick College, com uma bolsa de estudo: em vez de ter de pagar 1200 dólares por ano para estudar, só tinha de pagar a dormida e a comida. Poupei 10 a 15 mil dólares, o que era muito dinheiro.»
Hartwick College era uma pequena universidade, de 1500 estudantes, em Oneonta, no norte do estado de Nova Iorque, a quatro horas da grande cidade. No entanto, e apesar de ser pequena, tinha uma equipa de futebol forte, que competia na primeira divisão do campeonato universitário e que chegou a ser campeã em 1977.
«Formei-me 68 e nesse ano a universidade foi convidada, por causa da qualidade que tinha, a fazer uma digressão pela Europa. Durante 17 dias fizemos 14 jogos em Inglaterra, Países Baixos, Dinamarca, Alemanha, Berlim Oriental. Foi uma experiência incrível, por exemplo, passar o Checkpoint Charlie. Jogámos inclusivamente contra uma equipa de reservas do Ajax, que tinha um miúdo de nome Johan Cruijff», recorda.
«Aliás, nessa digressão vi o primeiro jogo profissional da minha vida, um Liverpool-Burnley, 3-1, para a Taça de Inglaterra. Adorei Anfield Road e o Kop. A minha exposição ao futebol internacional nos Estados Unidos era mínima e essa experiência teve um impacto enorme.»
O impacto foi tão grande, de resto, que a digressão seguinte já foi organizada por ele.
«Recebi o meu diploma em junho de 68, no dia em que Robert Kennedy foi assassinado, e dez dias depois embarquei com a equipa de um pequeno Liceu, que era treinada por um amigo. Fizemos uma digressão por Portugal, Espanha e Inglaterra, defrontámos o Dramático de Cascais, os Salesianos do Estoril, um misto de jogadores jovens do Sporting», revela.
«Foi aí que tudo começou. Durante sete anos só organizei digressões à Europa de equipas do Liceu e da Universidade. Foram cerca de 75 viagens de miúdos. Criei a minha própria empresa para isso e passava seis a sete meses por ano a viajar. Nessa altura guardava todos os contactos. De treinadores, de equipas, de hotéis, de empresas de viagens, enfim, tudo. Conheci muita gente e passados dois anos trazia nomes como Tommy Smith, Bill Shankly ou Bob Paisley aos Estados Unidos, para dar clínicas de futebol nas universidades.»
De clube em clube a contratar as estrelas do futebol europeu
A partir daí as coisas foram-se sucedendo.
Começou a fazer comentários na rádio, teve um programa na televisão, fez o anuário para a federação e, na sequência desse trabalho, propôs à mesma federação uma revista semanal.
Pelo caminho, o treinador Al Miller – que o tinha orientado no último ano na equipa universitária e que chegou a ser selecionador dos Estados Unidos – estava a treinar os Philadelphia Atoms, da NASL, e pediu a Francisco Marcos ajuda para identificar possíveis reforços no mercado europeu, que o português conhecia muito bem nessa altura.
Eram os tempos áureos da NASL, quando o campeonato atraía nomes em final de carreira como Pelé, Eusébio, Cruijff, Beckenbauer, António Simões, George Best ou Gerd Muller. Francisco Marcos indicou então cinco jogadores ingleses, incluindo Roy Evans, que viria a ser treinador do Liverpool.
Nesse ano, os Philadelphia Atoms foram campeões da NASL.
«As coisas começam a associar-se umas às outras e, conhecendo o meu trabalho, os Tampa Bay convidam-me para ser diretor de desenvolvimento e operações. Acabei com as excursões, vendi a empresa e mudei-me para Tampa», recordou.
«Passados quatro anos, os Dallas Tornado ofereceram-me o dobro para ser vice-presidente para o futebol. Lá fui para Dallas, mudar a cara da equipa, sobretudo ao nível do recrutamento. Contratei o Zequinha, do São Paulo, Klaus Toppmoller, o António Simões, com quem desenvolvi uma grande amizade. Depois fui para o Canadá, para os Calgary Boomers, mas não gostei e decidi vir embora.»
Quando o fim da famosa NASL se tornou um problema... que virou oportunidade
Tudo parecia correr normalmente na vida de Francisco Marcos, até que em 1984, contra todas as expetativas, os donos da NASL decidiram acabar com o campeonato.
«Eu voltei para Dallas e em 1986 fundei a SISL – Southwest Indor Soccer League. Começou com cinco equipas, que jogavam uma espécie de futebol de salão: um jogo com seis jogadores, tabelas, etc. Arrancou no Texas, Oklahoma e Novo México. Comecei por baixo, ao nível mais baixo possível, mas com algum profissionalismo. Tinha organização e tinha bons campos. Mas a Liga era amadora, claro, os jogadores não ganhavam», recorda.
«O campeonato foi um sucesso, eu fui vendendo franquias, porque era o dono e presidente da Liga. Em dez anos crescemos de cinco para 74 equipas. O campeonato deixou de ser regional e passou a ser nacional, sendo disputado por todo o país.»
Tudo se precipitou, aliás, em 1989, quando os Estados Unidos ganharam a organização do Mundial 94. Uma notícia que veio dar um impulso enorme ao futebol no país.
«A partir desse momento eu sabia que era uma questão de tempo até ao futebol ganhar o seu espaço. Nesse mesmo ano, em 89, lancei o campeonato outdoor, de futebol de onze, mantendo no inverno o indoor. Em 1992 foram abertas negociações para admitir uma Liga Profissional da segunda divisão e outra da terceira divisão. Conseguimos ganhar a admissão para a Liga da terceira divisão e passámos a ter estatuto de fundadores.»
Por via disso, Francisco Marcos ganhou o direito de integrar a direção da Federação dos Estados Unidos e em 1994, logo a seguir ao Campeonato do Mundo, tornou-se decisivo na reeleição do presidente Allan Rottenberg, que tinha sido principal impulsionador do Mundial.
«O meu voto foi essencial. Eu tinha sete votos e ele ganhou por um. Foi um detalhe fundamental, depois o Allan Rottenberg lançou a MLS e eu ganhei peso na Federação. Inclusivamente fui responsável pela contratação de Carlos Queiroz para selecionador», conta.
«Aliás contratei-o duas vezes, mas na primeira ele não foi. Vim eu e o Rottenberg a Lisboa, reunimos com ele, acertámos tudo. Nessa semana o Sporting ganhou a final da Taça, ao Marítimo, e três dias antes de viajar para os Estados Unidos o Santana Lopes convenceu-o a ficar. Curiosamente acabou por despedi-lo em fevereiro.»
Antes disso, porém, um ano antes disso, a marca desportiva Umbro apresentou-lhe uma proposta para comprar a Liga da terceira divisão, com a condição de ele ter de continuar como presidente. Estávamos em 94 e o português aceitou a proposta.
«Nesse ano vendi uma percentagem, depois, e até 2001, fui vendendo mais percentagens aos poucos à Umbro, continuando sempre como presidente», revela.
«No meio deste processo criei a pirâmide das três divisões, absorvendo as equipas da então segunda divisão, a A League. Em 94 criei a primeira liga feminina, a W League, na qual jogou a Mia Hamm, e que mais tarde também vendi à Umbro. Até que em 2009 a Nike, que tinha adquirido a Umbro, quis vender a USL. Apareceram quatro propostas e eu sugeri a proposta de dois investidores de Atalanta. A partir daí fiquei apenas como presidente emérito, embora tenha continuado a integrar a Federação.»
Foram 26 anos como presidente executivo daquela que se tornou a maior Liga de futebol dos Estados Unidos, dividida em três divisões, com centenas de equipas e milhares de jogadores.
E é, naturalmente, esse trabalho que o Hall of Fame agora premeia.
«Há uns anos o Hall of Fame mudou o critério: todos os anos elege para entrar um jogador masculino e um feminino, e a cada três anos nomeia um dirigente, um árbitro e um treinador, rotativamente. Há três anos já tinha sido indicado, mas fiquei a um voto do vencedor», referiu.
«Este ano a lista inicial era de 32 nomes. Cada um tem no Hall of Fame um defensor, que foi a pessoa que o indicou e que defende o mérito dele. O meu defensor é Al Miller, que foi meu treinador na universidade, que trabalhou comigo em três equipas profissionais e que se tornou um dos meus melhores amigos. Aliás, ele já está no Hall of Fame há uns anos. Portanto, da lista inicial de 32 nomes, o comité fez uma primeira redução para dez e posteriormente para os quatro finalistas.»
Francisco Marcos acabou por ganhar, ele que nesta fase da vida anda sempre entre os Estados Unidos e Portugal, tendo, por exemplo, viagem já marcada para esta quarta-feira para o congresso da Federação Norte-Americana de Futebol. Logo a seguir regressa a Portugal.
«Sou doente pelo Sporting. Vejo todos, todos, todos os jogos. Fazemos viagens de dois, três, quatro dias, às vezes eu e a minha mulher, outras vezes eu, a minha mulher e amigos, e vamos conhecendo o país e a Europa atrás do Sporting.»
No dia em que falou com o Maisfutebol, aliás, Francisco Marcos estava à espera da chegada de um casal amigo que vinha dos Estados Unidos para juntos irem ver o Sporting-Sp. Braga, em Leiria.
«Nos últimos tempos fui a Bérgamo, Rakow, Londres, Áustria, Alemanha, enfim, sigo o Sporting para todo o lado. A minha outra paixão são os Mundiais. Tenho 14 campeonatos do mundo vistos presencialmente. Desde 1970. Aliás, o meu filho tem 30 anos e sete campeonatos seguidos, todos os que houve na vida dele. E quer ver os mundiais todos até ao fim da vida. No meu caso deve ser recorde e vou fazer o pedido ao Guiness. Só ainda não tratei disso porque preciso de recolher todas as provas e organizar isso.»
Enquanto não sabe se entra no Guiness, prepara-se para entrar, sim, no Hall of Fame do soccer. É já no dia 4 de maio, numa gala em Dallas dedicada a ele. Vai ser a homenagem de uma vida e Francisco Marcos está entusiasmado.
«Só não gosto de ter de vestir um casaco vermelho», brinca.
«Vai ser a primeira vez que vou de vermelho.»