A atravessar o pior momento da temporada, fruto da derrota no dérbi e da dura goleada sofrida no Dragão, o Benfica tem agora um novo desafio pela frente. E desengane-se quem considera que o Rangers não vai ser um «osso duro de roer» para a equipa de Roger Schmidt. Para descobrir mais sobre a equipa escocesa, fomos perguntar a quem conhece bem os cantos à casa.

Além de Fábio Silva, contratado no mercado de janeiro, outro português fez parte do percurso do Rangers até aqui. João Araújo foi scout dos escoceses até dezembro passado e alerta para os perigos que o Benfica vai encontrar nos oitavos de final da Liga Europa, uma eliminatória que exige um aumento dos índices de rendimento dos encarnados para evitar um pesadelo em Ibrox.

Em conversa com o Maisfutebol, João Araújo, que agora trabalha nos belgas do Cercle Brugge, destaca a chegada de Philippe Clement ao comando técnico, em outubro passado, como um momento de viragem na equipa.

«A entrada do novo treinador teve também impacto na estrutura do clube, entrou um diretor desportivo novo, assim como um diretor de recrutamento. Estão a tentar dar um novo rumo ao clube e tem dado resultado, porque estão em primeiro lugar, recuperaram uma desvantagem [no campeonato] que era significativa. Com uma proposta ligeiramente diferente à do passado, conseguiram reverter a situação e estão numa grande forma», aponta João que, no passado, integrou a equipa técnica do Leixões, tendo ainda passado, com Carlos Pinto, pelo Vilafranquense e pelos sauditas do Al Jabalain.

João Araújo é scout nos belgas do Cercle Brugge, que pertencem ao grupo do AS Monaco

O scout português aponta que o Rangers é uma equipa «pragmática».

«Sem bola, tem uma organização forte, tentam ser bastante pressionantes sobre a bola, são bastante fortes nos duelos em campo. Tentam ser dominantes sobre o adversário nas disputas em campo e, acima de tudo, na verticalidade na frente de ataque, com jogadores rápidos, fortes no um contra um e com uma capacidade diferente daquela que existia no passado. Alguns jogadores regressaram de lesão e também vieram acrescentar qualidade», avisa.

Habitualmente, o Rangers apresenta-se em 4-2-3-1 e é na linha defensiva que se podem encontrar alguns pontos menos fortes da equipa. «O Rangers tem uma linha defensiva muito experiente, mas com a experiência também vêm coisas menos positivas. São jogadores fortes nos duelos, mas que têm dificuldades de movimento, alguma mobilidade que já não era a de há uns anos e podem ter dificuldades com jogadores rápidos e fortes tecnicamente como o Benfica tem.»

«Têm uma linha de quatro com jogadores experientes, têm o lateral-direito [James Tavernier] que é um dos defesas com mais golos de sempre. É uma ameaça em tudo o que são bolas paradas, sejam penáltis, livres ou cantos. Tem uma batida muito boa. Têm centrais fortes fisicamente, que gostam do contacto e dos duelos, mas têm dificuldades em cobrir, algumas vezes, a profundidade e o espaço em contra-ataques. Na esquerda, tanto podem ter o Ridvan Yilmaz ou o Borna Barisic. O Yilmaz é um lateral mais ofensivo, sem tanta capacidade física, mas tem uma capacidade técnica boa e dá mais garantias a atacar. O Barisic é um jogador mais experiente, mas tem dificuldades se apanhar um jogador rápido. É um dos pontos que o Benfica pode aproveitar», acrescenta.

O conjunto de Glasgow costuma promover mexidas no onze inicial, até porque o contexto competitivo em que está inserido, inferior ao português, permite essas mudanças, mediante a estratégia.

«Varia muito consoante o adversário e da maneira como o procuram atacar. Acredito que na primeira mão vão apresentar jogadores com mais capacidade de trabalho, porque tentar segurar a eliminatória para a segunda mão  será importante para o Rangers. Na segunda mão vão tentar colocar alguma qualidade em campo para poderem atacar a eliminatória», aponta.

Na frente de ataque, por exemplo, a equipa pode apresentar «dois perfis diferentes», quer jogue com Cyriel Dessers ou com o português Fábio Silva.

«O Dessers é mais um jogador-alvo, que tem uma capacidade forte de trabalho dentro de área e de segurar os defesas. O Fábio Silva tem umas características complementares, trabalha bem os espaços, é incansável a pressionar e pode dar trabalho aos defesas do Benfica se houver espaço para entrar. Nas pontas, têm alguns jogadores novos, que eram conhecidos há muito tempo pelo departamento de scouting. São jogadores rápidos, fortes no um contra um e com capacidade de tirar vantagem dos duelos e de pressionar. Vai depender muito dos jogadores que o Rangers apresentar, porque têm características diferentes, seja o Dessers ou o Fábio Silva na frente, ou o Cortés numa ponta, ou o Abdallah Sima, ou até mesmo o Tom Lawrence. São jogadores diferentes, mas todos têm em comum a capacidade de vencerem os duelos e de serem verticais na frente de ataque», alerta.

Apesar de reconhecer que «não é o favorito para a eliminatória», João considera que o Rangers «vai tentar colmatar algumas dificuldades a nível técnico com a capacidade física e de trabalho». Philippe Clement pede à equipa que jogue de forma compacta, «pressionem o portador da bola e tirem vantagem dos duelos».

«Se o Benfica não colocar a mesma intensidade, pode ter dificuldades. Mas, a nível técnico, o Benfica é superior», ressalva.

Resolver na Luz para evitar a pressão de Ibrox

O Rangers chega à Luz vindo de uma derrota surpreendente no último fim de semana, na receção ao Motherwell (2-1). Este desaire pôs fim à série de 11 vitórias consecutivas dos «light blues», mas o antigo scout da equipa não acredita que possa ter impacto no rendimento dos jogadores em Lisboa, até porque estão bastante confiantes.

«Tendo em conta os últimos meses, é um saldo muito positivo terem recuperado o primeiro lugar para o Celtic quando tinham muitos pontos de atraso. É um fator que dá bastante confiança à equipa. Acredito que o Rangers sabe que o Benfica é candidato a passar e vai entrar na eliminatória com o objetivo de disputar todos os lances, colocar o Benfica em pressão com e sem bola e tentar levar a decisão para Ibrox, onde podem tirar vantagem do ambiente», vinca.

Bancada de Ibrox, o estádio do Rangers

De resto, Ibrox é uma grande ameaça ao Benfica. Na fase de grupos, além do triunfo na visita ao Betis, no Benito Villamarín, o registo do Rangers destacou-se por não ter perdido qualquer jogo em casa (duas vitórias e um empate). Se o Benfica não ganhar conforto na Luz, pode ter dificuldades em lidar com o público escocês.

«É um ambiente incrível aquele que se vive em Ibrox. É importante, ou até mesmo crucial, o Benfica levar um resultado vantajoso para Ibrox, para evitar percalços. Se olharmos para a caminhada do Rangers há dois anos na Liga Europa, em que vão à final, foi exatamente isso que aconteceu em duas eliminatórias. A eliminatória foi decidida em Ibrox [com Sp. Braga e Leipzig, nos quartos e nas meias-finais, respetivamente] e naquele estádio, com aquele ambiente, qualquer equipa pode passar dificuldades», aponta.

No entender do scout português, «nesta eliminatória tudo vai depender daquilo que o Benfica é capaz de fazer».

«Se o Benfica estiver ao seu nível, consegue passar a eliminatória. A primeira mão vai ser fundamental. Se o Benfica deixar em aberto a eliminatória ou não colocar toda a sua concentração e disponibilidade nos jogos, vai ser um adversário que vai dar trabalho. Vão exigir um Benfica ao seu melhor nível para passar e acredito que, se o Benfica o fizer, passa a eliminatória até com alguma facilidade», afirma.

Um português a surpreender

Durante o seu percurso no Rangers, João ficou responsável pela observação de jogadores na Península Ibérica e América do Sul, mercados a que o clube tem estado mais atento recentemente. Os escoceses procuram jogadores «dinâmicos, intensos e com capacidade física para dominar os duelos em campo, físicos ou técnicos». A juntar a isto, o Rangers pretende jogadores com «capacidade de lidar com a pressão».

«Sendo clubes de uma dimensão enorme na Escócia, a pressão que o Rangers e o Celtic têm é enorme. Só jogadores com personalidade conseguem ter rendimento num contexto daqueles», sublinha.

Fábio Silva tem três golos em 11 jogos pela equipa de Glasgow

Um desses jogadores é Fábio Silva. Com apenas 21 anos, o avançado português está a viver a quarta experiência num clube estrangeiro, mas tem surpreendido os responsáveis do Rangers, que o contrataram a título de empréstimo, no último mercado, junto do Wolverhampton.

«Está a superar as expectativas, é um jogador no qual o clube depositava bastante esperança, mas mesmo assim está a superar, devido à capacidade dele e pela forma como se integrou no plantel. Tem tudo para fazer um bom resto de época e, depois, não saberemos o futuro», revela João Araújo.

O futebol escocês, recentemente, tem recebido algumas promessas lusas. Depois de Jota, Paulo Bernardo também rumou ao Celtic e, agora, é Fábio Silva quem está num dos grandes clubes do país.

«É um bom contexto para jogadores que fizeram a formação em clubes grandes. O Rangers tem a dimensão mediática dos três grandes de Portugal, é um clube que divide o país em dois, juntamente com o Celtic. A pressão é grande, é um clube onde dá gosto jogar porque tem sempre o estádio cheio e a obrigação de ganhar todos os jogos do campeonato. É um contexto quase perfeito se for um jogador jovem, se tiver capacidade de trabalho e de muitas vezes não jogar um jogo perfeito a nível técnico, mas também colocar a sua agressividade em campo, porque não podemos esquecer de que estamos a falar do futebol britânico e isso está sempre implícito no estilo de jogo. Se conseguirem aliar isso à qualidade intrínseca que o jogador português tem, poderá ser uma plataforma muito interessante para dar o salto para um campeonato mais apelativo» opina.

Dissecado o modelo de jogo, referências, pontos fortes e debilidades do Rangers, é possível antecipar que o Benfica vai ter muitas dificuldades pela frente se mantiver os índices exibicionais do passado recente.

A primeira mão dos oitavos de final joga-se esta quinta-feira na Luz (20h00) e é fundamental para os encarnados vencerem de forma indiscutível, para irem à Escócia, a 14 de março, em boa posição.