Nelson Mandela faleceu esta quinta-feira: o símbolo da luta contra o regime do apartheid, e no fundo da luta contra a segregação pela raça, partiu aos 95 anos.

Deixou uma vida cheia que inspirou milhares de pessoas um pouco por todo o mundo. Deixou também, e sobretudo, um legado que mudou a África do Sul, e a humanidade.

No dia da morte de Nelson Mandela, o Maisfutebol recupera um trabalho realizado nas vésperas do Mundial 2010 e que se mantém atual.

Um trabalho que responde sobretudo a uma pergunta: o que mudou no futebol sul-africano desde a libertação do símbolo da luta contra o apartheid? Fácil: tudo.

A imagem inicial do filme Invictus é perfeita, aliás.

A película celebra a importância do título mundial de râguebi em 95 no sucesso da integração social na África do Sul e começa com uma imagem de jovens brancos a jogar râguebi e de jovens negros a jogar futebol: ao meio uma estrada e arame farpado a separar os dois campos.



Era assim a África do Sul de final dos anos oitenta. Foi assim a África do Sul durante três décadas, aliás.

Rogério de Sá e Zeca Marques viveram esse país. Ambos jogaram futebol em pleno apartheid. «Era complicado», diz o segundo, que deixou o Porto com dois anos.

«Havia um campeonato de brancos, um campeonato de negros, um campeonato de mestiços e um campeonato de indianos. Mais tarde os dois últimos juntaram-se e até podiam ter brancos, mas o negro foi sempre à parte.»

«Só a partir de 85 ou 86 é que se juntaram e podia haver equipas que incluíssem todas as raças.»

Rogério de Sá só já conheceu essa parte. «Eu era o único branco numa equipa negra. Podíamos treinar e jogar, mas não podíamos viver juntos.» O que criava situações extremas. «Não podia estagiar com eles, por exemplo, porque os estágios eram na parte negra.»

No tempos do apartheid, é bom lembrar, o país tinha sido excluído da FIFA e estava proibido de participar em provas internacionais. Havia até sanções para quem competisse com a África do Sul.

A libertação de Nelson Mandela tornou-se o pontapé de saída para uma metamorfose social, que mudou para sempre o país. Uma metamorfose também que caminhou de braço dado com a bola.

«O apartheid era desumano, sem dúvida, mas o desporto é que salvou a integração social. O desporto salvou esta malta toda.»

As palavras são de Rogério de Sá, um sul-africano de origem portuguesa, que viveu o apartheid e todas as alterações sociais que se lhe seguiram dentro do campo.

«Se não fosse a bola, a população tinha-se matado pela raiva. O sucesso da selecção de râguebi em 95 e da selecção de futebol em 96 salvaram o país.»

Um país, uma bandeira

A cruzada dos Springboks deu um filme: Invictus. «Foi o golpe do génio.» Mas não foi o único: a selecção de futebol venceu a Taça das Nações Africanas em 96 e teve o efeito contrário.

«O râguebi era dos brancos, o futebol era dos negros e Mandela aproveitou o sucesso de ambos para unir o país debaixo de uma bandeira.»

Zeca Marques, também ele sul-africano de origem portuguesa, assina por baixo. «Ainda me arrepio quando falo disso», conta.

«Era uma situação muito, muito difícil. O país estava pronto para rebentar. Nélson Mandela salvou-o com os sucessos desportivos. Mas soube fazê-lo. Era uma pessoa inigualável.»

Uma equipa para a eternidade

Mandela passara décadas na prisão, saiu 27 anos depois e pronto a desculpar quem não perdoou considerar as raças iguais. «Não era normal. Tive a sorte de o conhecer e ao pé dele sentia-se uma vibração especial», diz Rogério de Sá.

«Os brancos eram perfeitos nazis e ele conseguiu o apoio deles. Mudou mentalidades.»

Com o fim do apartheid, a África do Sul foi reintegrada na FIFA. Pela primeira vez fez o apuramento para um Mundial, na circunstância para os Estados Unidos 94.

Dois anos depois foi campeã africana. «A integração social permitiu o desenvolvimento do futebol e o surgimento da geração de ouro de 96.»

Zeca Marques fala de um deserto futebolístico no apartheid.

«Devido aos embargos não havia treinadores estrangeiros no país, não competíamos no exterior, não nos desenvolvíamos. Com o fim do apartheid houve um boom. Juntámos a organização branca com o talento negro e criámos uma selecção campeã.»

Um Mundial, 20 anos depois

Para trás tinha ficado o bloqueio da FIFA, a inexperiência internacional e até a ideia peregrina de apresentar uma equipa totalmente branca no apuramento para o Mundial 66 e uma equipa toda negra no apuramento para o Mundial 70.

Naturalmente chumbada, claro. Com um puxão de orelhas da FIFA pelo meio.

O sucesso de 96 não voltou a repetir-se, mas o futebol evoluía sozinho. Ao ponto de vinte anos depois receber um Mundial da FIFA.

«A África do Sul só precisava de se entender. Tem capacidades ao nível dos EUA ou da Austrália», diz Rogério de Sá.

«A libertação de Mandela uniu todas as pontas. Acabaram as sanções internacionais e a economia desenvolveu-se.»

«Os meus filhos vão poder viver num país normal, a África do Sul pode aproveitar o grande potencial que tem, construir as melhores infra-estruturas e ser feliz.»

Por isso, e voltando à pergunta inicial, mudou tudo na África do Sul. Mudou tanto, aliás, que o país organizou um Mundial.

Foi um sonho concretizado para Nelson Mandela, e para uma curta delegação portuguesa: Carlos Queiroz e Cristiano Ronaldo tiveram o raro privilégio de ser recebidos por Mandela.

O Mundial proporcionou de resto uma das últimas aparições públicas de Mandela, precisamente na final jogada em Joanesburgo. Nessa altura o símbolo da luta contra o apartheid sorriu: sorriu ao ver como o mundo era um lugar melhor.

É esse legado que deixa Nelson Mandela. Que descanse em paz.

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