O líder elegante, o vencedor em série, o jogador que definiu uma posição e cunhou uma alcunha que é um conceito. Kaiser. Figura maior do jogo, o nome mais influente da história do futebol alemão, campeão do mundo como jogador e treinador, Franz Beckenbauer é talvez o último dos gigantes do século XX a partir. Morreu aos 78 anos e deixa um legado imenso. A torrente de reações que chegam de todo o mundo ilustra bem esse legado.

Da decisão de adolescente que definiu o futuro do futebol alemão a tantas vitórias, de figura na seleção aos 20 anos ao heroísmo numa derrota, do topo da Europa ao topo do mundo, de estrela pop em Nova Iorque a treinador campeão do mundo, esta é uma viagem pelos momentos que construíram a lenda do Kaiser.

A chapada que é lenda e mudou a história

Franz jogava no SC Munich 06, num campo que ficava bem próximo da sua casa. O miúdo que nasceu na Munique do pós-guerra numa família da classe trabalhadora, com um pai que trabalhava nos correios e não ligava a futebol, tinha o sonho de jogar no TSV 1860, o grande clube da cidade nesse tempo. Tinha 13 anos quando mudou de ideias. Ele próprio contava a história assim: um dia, num torneio de formação, um jogador do 1860 deu-lhe uma chapada e ele, zangado, decidiu que não jogaria lá. Em vez disso, tornar-se-ia jogador do Bayern Munique. «Foi simplesmente o destino que eu e o meu adversário do 1860 tenhamos brigado e que eu tenha escolhido o vermelho em vez do azul. No fim de contas, tenho de estar grato por o Gerhard Konig me ter dado uma chapada», disse há anos o Kaiser, numa entrevista recordada agora pelo site da Bundesliga. A história talvez não se resuma apenas a isto, como disse ao Maisfutebol o jornalista e autor Uli Hesse, que escreveu uma biografia do Kaiser: «A história é um pouco estranha, porque durante décadas ninguém sabia quem era o jogador do 1860. Agora temos três jogadores que disseram que bateram no Beckenbauer. O próprio Beckenbauer não se lembra do nome. Também há a teoria de que o Beckenbauer e os amigos queriam ir para o Bayern, e só precisavam de uma desculpa para não ir para o 1860. Portanto, talvez tenha havido uma chapada na cara, mas… É lenda.» Fica a lenda, pois.

O vencedor em série que fez do Bayern gigante

Franz teria mais tarde oportunidade de rumar ao TSV 1860, que teve primazia sobre o Bayern na fundação da Bundesliga, em 1963. Mas nessa altura decidiu continuar no Bayern, por sentir que teria mais oportunidades. O facto é que essa decisão definiu a história do futebol alemão. Ao longo de mais de uma década, Beckenbauer foi em campo o líder da ascensão do Bayern Munique a potência global. Estreou-se pela equipa principal aos 18 anos, um ano mais tarde venceu a Regionalliga Sud, o segundo escalão do futebol alemão. Era o troféu inaugural de uma longa lista. O primeiro título internacional chegou em 1967, com a conquista da Taça das Taças, a lançar uma era de ouro. Cinco títulos de campeão alemão, três Taças dos Campeões Europeus consecutivas entre 1974 e 1976. Um vencedor em série que se cruzou também com o futebol português e com o Benfica, nos quartos de final da Taça dos Campeões de 1975/76, que terminaram com uma goleada do Bayern por 5-1 e confirmaram a sua aura. «Jogava de uma forma simples, o que é difícil», como resumiu ao Maisfutebol Toni, então capitão das águias: «Contava com uma mão os passes que ele errava durante um jogo e sobravam dedos.» No final desse ano venceu a segunda Bola de Ouro da sua carreira.

1966, figura do Mundial aos 20 anos

Chegou cedo também à seleção. Tinha 20 anos no primeiro dos seus três Mundiais como jogador e foi ainda como médio que se revelou ao mundo em Inglaterra, titularíssimo na caminhada da RFA até à final, perdida para a seleção anfitriã. Marcou quatro golos em 1966, incluindo um bis à Suíça a abrir. O primeiro, como mostra este vídeo, diz muito sobre o que jogava Beckenbauer.

1970, grande também na derrota

Ao segundo Mundial, Beckenbauer voltou a deixar a sua marca. A uma exibição memorável, a lançar a reviravolta nuns quartos de final com sabor a desforra frente à Inglaterra, seguiu-se a meia-final com a Itália. Com o Estádio Azteca por palco, o duelo dos duelos em Mundiais, a que chamaram o jogo do século. 1-1 no final dos 90 minutos, cinco golos no prolongamento, vitória da Itália por 4-3 e uma imagem para a história de Beckenbauer, que sofreu uma luxação na clavícula mas continuou em campo e, sem que a «Mannschaft» pudesse fazer mais substituições, jogou desde o início do prolongamento de braço ao peito.

1972, de trás para a frente na consagração com a Mannschaft

Dois anos mais tarde, a Alemanha ganhou o Campeonato da Europa, com Beckenbauer a usar a braçadeira de capitão e a assumir um novo papel em campo. Recuou no terreno, cresceu em influência. Deu novo sentido ao conceito de líbero, era o defesa que convertia uma recuperação num lance ofensivo, com o toque de bola elegante e porte aristocrático que seduziu companheiros e adversários. Foi no pé de Beckenbauer que nasceu a vitória na final do Europeu, frente à URSS. Depois daquele Europeu venceu a sua primeira Bola de Ouro.

1974, finalmente no topo do mundo

No Mundial que a Alemanha organizou, Beckenbauer liderou a «Mannschaft» em cada minuto de jogo, incluindo a embaraçosa derrota frente à RDA na fase de grupos. No final, levantou o troféu depois da vitória no jogo decisivo frente aos Países Baixos de Johan Cruyff, a seleção favorita dos adeptos neutrais. Era a primeira seleção a juntar o título europeu ao título mundial, em comum tinha um nome. Franz Beckenbauer, por essa altura já elevado à condição de imperador. Der Kaiser, a alcunha cuja origem nunca foi muito clara, embora ele próprio contasse que surgiu depois de uma sessão de fotos em Viena ao lado da estátua de Francisco José, imperador da Áustria. Com a seleção, ainda chegou à final do Europeu de 1976, perdida para a Checoslováquia no penálti de Panenka. Somou 103 jogos com a camisola da Alemanha e marcou 14 golos.

Uma estrela pop ao lado de Pelé em Nova Iorque

Em 1977, Franz Beckenbauer deixou a Alemanha para rumar aos Estados Unidos. Anos mais tarde, recorda a Associated Press, contou que se deixou convencer quando o levaram numa viagem de helicóptero pelos céus de Manhattan até ao Giants Stadium. «Era o estádio mais moderno do mundo. Não tínhamos daquilo na Europa. Quando sobrevoámos o estádio, disse-lhes: «Pronto, parem, eu vou.» Atraído pelos dólares e pelo glamour, viveu três anos dourados no New York Cosmos. Uma vida de estrela pop, em que conciliava uma agenda social intensa, a frequentar os locais de diversão mais famosos da cidade, como a discoteca Studio 54, com o foco em campo. Conquistou três campeonatos, porque vencer e liderar estava-lhe no sangue. O antigo defesa Óscar, que também partilhou balneário com Beckenbauer, Pelé e Carlos Alberto no Cosmos, contou este pormenor ao Globo Esporte: «Tinha um prestígio enorme com a torcida do Cosmos e também com a direção de modo geral. O prestígio era tão grande que pedia substituição de jogadores se alguém não estivesse bem.»

Campeão do mundo, agora no banco

Voltou à Alemanha, para jogar no Hamburgo e conquistar ainda mais um título de campeão alemão, em 1982. Depois ainda viveu um breve regresso aos Estados Unidos, onde terminou a carreira aos 38 anos. Pouco depois, apesar de não ter experiência como treinador, assumiu a seleção da Alemanha. Levou a equipa até à meia-final do Mundial 86 e à meia-final do Europeu de 1988, antes da consagração em Itália. Quatro anos depois, a Alemanha levou a melhor na reedição da final com a Argentina de Diego Maradona. E Franz Beckanbauer tornava-se apenas o segundo homem na história a ser campeão do mundo como jogador e treinador. O primeiro foi Mario Zagallo, quis o destino que também ele tenha partido há poucos dias, na passada sexta-feira.

O regresso vencedor ao Bayern, do banco aos gabinetes

Deixou a seleção depois da conquista do Mundial e iniciou uma transição para cargos diretivos. Mas sem resistir a passar pelo banco. Foi assim numa passagem breve pelo Marselha, onde chegou como diretor desportivo mas exerceu durante alguns meses como treinador, e depois no Bayern Munique. Treinou o clube em duas ocasiões e em ambas venceu troféus – em 1994 foi campeão alemão e em 1996, quando já tinha assumido a presidência do Bayern, voltou ao banco para liderar a equipa na reta final de uma época que terminou com a conquista da Taça UEFA. Liderou o Bayern Munique até 2009, dedicando-se a consolidar a afirmação do clube como um colosso do futebol mundial.

Mundial 2006, a última vitória no meio de sombras

Em paralelo com a presidência do Bayern Munique, foi vice-presidente da Federação Alemã e membro do Comité Executivo da FIFA. Foi ele o rosto da candidatura germânica à organização do Mundial 2006, a sua última grande vitória. Sobre essa candidatura, bem como sobre o seu envolvimento como membro da FIFA nas atribuições dos Mundiais de 2010, 2014 e 2018, foram levantadas diversas suspeitas de apropriação indevida de fundos e corrupção, das quais não resultaram conclusões definitivas. Beckenbauer afastou-se nos últimos anos da vida pública, quando a sua saúde já se degradava.