«Tudo isto é muito importante, mas o que é demais cheira mal». A frase é de Fernando Santos perante uma plateia de alguns dos mais reputados especialistas clínicos na área de estudo da cardiologia do desporto, durante o Congresso Clínico Internacional «Leaping Forward», que decorreu no Hospital da Luz e que abordou a morte súbita no desporto.

O selecionador grego participava no painel na condição de treinador com mais de duas décadas de experiência e partilhou a sua visão sobre a evolução do treino. No fundo, o engenheiro limitou-se a transformar em palavras simples o que outros disseram de forma complexa. A verdade é que apesar dos muitos estudos, da enorme evolução, continuam a morrer atletas em competição, nomeadamente futebolistas, embora seja um fenómeno extremamente raro ( como ficou demonstrado nesta reportagem).

Claro que há muito ainda a fazer, até porque no caso de Portugal apenas metade dos estádios de futebol dispõem de desfibrilhadores automáticos e só um quarto dos locais onde os jogadores treinam têm estes aparelhos, que podem evitar mortes como a de Miklos Fehér, como confirmou recentemente a UEFA.

O cardiologista Nuno Cardim lembrou, a propósito, que existe uma recomendação para os estádios disporem destes aparelhos, mas que a sua existência não é obrigatória por lei: «É preciso muita pressão, de todos, para que esta recomendação se torne lei. Os desfibrilhadores salvam vidas, pois permitem manter os doentes vivos até chegarem ao hospital».

E já que se fala em Fehér, Fernando Santos colocou essa problemática em palavras simples, recordando que o húngaro foi seu jogador no FC Porto durante dois anos e «nunca apresentou problemas de ordem cardíaca», o que o faz suspeitar que estas mortes estarão associadas a situações de stress e ansiedade, uma vez que os casos conhecidos de atletas com morte súbita cardíaca aconteceram durante o jogo e não num treino.

O simpósio foi enriquecido pela presença de Nuno Gomes, que estava em Guimarães quando Fehér caiu fatalmente no relvado. Passados dez anos reconhece que houve um certo pânico na equipa do Benfica: «Todos os jogadores do plantel tinham a preocupação obsessiva sobre o que poderia acontecer, pois ele tinha feito os mesmos exames que nós». O ex-jogador admite que a partir daquele momento quis ser sempre monitorizado pelos médicos do clube. 

Fernando Santos considera que «a preocupação existe», mas recorda que os atletas são monitorizados há pelo menos 15 anos e quanto à morte de Fehér explica que se trata de um momento «muito forte», que naturalmente levanta muitas preocupações.

A verdade é que existem vários abordagens. Um dos especialistas presentes, o médico italiano Domenico Corrado (professor de medicina cardiovascular que estuda a morte súbita em jovens há mais de 25 anos), defendeu a triagem cardiovascular obrigatória para todos os atletas e a presença de desfibrilhadores nos estádios, seguindo o que acontece em Itália. Este convidado é uma referência mundial no estudo da morte súbita cardíaca no desporto e, ainda assim, reconhece que as razões da morte súbita não são totalmente conhecidas, embora algumas possam ser evitadas se os atletas forem sujeitos a um controlo, a nível da prevenção primária.


«Os jogadores não gostam de ser sempre controlados»

Mas voltando ao início e ao sentido prático de Fernando Santos. Na opinião do treinador há um problema na monitorização constante do jogador de alta competição. Apesar dos esforço constante, e há atletas que fazem cerca de 60 jogos numa época, «as equipas têm de ganhar e há alguns que são tão melhores que os outros que têm de jogar» e «mesmo que vão a passo vão lá para dentro», por isso «a questão da fadiga é central no treino de hoje em dia».

«Os jogadores não gostam de ser sempre controlados, nomeadamente a meio da época, porque acham que podem perder o lugar. Na minha opinião, a questão do stress competitivo, que é algo que não conseguimos controlar, é um fator de risco para os atletas essencialmente durante o jogo», frisou no final de uma apresentação com direito a powerpoint.

Nuno Gomes concorda com a ideia de Fernando Santos. «Os jogadores preocupam-se em jogar futebol e pouco com saúde. No caso de Fehér o doutor João Paulo Almeida, diretor clínico do Benfica, foi bombardeado com perguntas dos jogadores nos dias seguintes, porque o Fehér fez os mesmos exames que nós fizemos, por isso estavamos preocupados se nos podia acontecer o mesmo. Eu ainda hoje em dia me preocupo e nestes seis meses sem jogar já fui duas vezes ao hospital ver se a máquina estava em condições», frisou.

Quanto ao fator stress, o ex-avançado reconhece que poderá ter influência: «Talvez seja uma das causas, pois com o aproximar do jogo o nível de ansiedade aumenta, assim como o stress. Na altura o Fehér atravessava um período de alguma ansiedade, de stress na sua vida, mas há jogadores que lidam melhor com o aproximar do jogo. Eu, por exemplo, sentia-me mais confortável no Estádio da Luz com 60 mil pessoas do que aqui com uma plateia de 150. Depois de Fehér mudei o meu comportamento com os médicos, perguntava sempre se estava tudo bem e mesmo quando não havia exames eu pedia para fazer, porque tinha receio»


Na mesma linha de pensamento está Luis Serratosa, ex-médico do Real Madrid, reconhecendo que «é bom monitorizar, mas não sempre». «Acho que estamos numa fase louca de monitorização, mas temos de usar as ferramentas certas. Podemos fazer coisas simples, utilizando os métodos existentes, sem gastar muito. O que acontece é que os médicos são responsáveis por tudo nas equipas, mas não decidem, quando a sua opinião devia ser tomada em consideração para melhorar as coisas. Muitas das vezes podem até aconselhar a poupar dinheiro», disse o espanhol.

E é aí que Fernando Santos acrescenta: «Tudo isto é muito importante, mas o que é demais cheira mal. O protocolo deve ser seguido, mas com o decorrer da época pode gerar confusão entre o grupo e isso também causa stress». Certo é que um corpo médico multidisciplinar, preparada para todas as circunstâncias, é vital para uma equipa de alta competição, ao contrário do que acontecia em 2001 quando o treinador chegou à Grécia pela primeira vez.

Estas baterias de exames, aliás, podem nem sempre ser fiáveis se não houver colaboração da parte dos próprios jogadores. Nuno Gomes reconhece: «Usei muitas vezes os Polar, mas o jogador chega a um ponto em que está a sentir que está a ser controlado e tenta aldrabar o sistema para que o treinador não perceba se estamos em forma ou não, porque o jogador quer jogar sempre. O jogador consegue descobrir formas para que o Polar não funcione».

Salvar vidas

Toda a gente conhece os casos de Marc Vivien Foé, de Fehér ou de Fabrice Muamba, mas os especialistas presentes no simpósio partilharam casos concretos de atletas que foram acompanhados por si antes e depois dos eventos.

O australiano Andre La Gerche falou de como o exercício pode induzir problemas cardíacos e entre vários exemplos abordou o caso trágico de Jobie Ditka, um ciclista australiano que morreu de paragem cardíaca. «Tinha o coração maior do que o normal e quatro anos antes tinha sido estudado», mas nessa altura não tinha qualquer problema no ritmo cardíaco. 


Luis Serratosa, por seu lado, falou de Ruben de La Red, jogador do Real Madrid que teve de terminar a carreira depois de ter perdido os sentido em campo. Oito dias antes tinha feito um electrocardiograma que não tinha detetado qualquer problema. Só dois anos depois acabou por retirar-se do desporto e foi operado para colocar um desfribilhador interno, que acabaria por lhe salvar a vida durante um jogo de ténis. Felizmente o problema foi resolvido e De La Red é hoje treinador dos sub-15 do Real Madrid. Um exemplo de quem nem sempre este casos têm de terminar em tragédia.