«Depois do Adeus» é uma rubrica dedicada à vida de ex-jogadores após o final das carreiras. O que acontece quando penduram as chuteiras? Como sobrevivem os que não ficam ligados ao futebol? Críticas e sugestões para spereira@medicapital.pt

Pôs em brasas as defesas contrárias em dez épocas na Liga, com velocidade, técnica e potência no remate. Fez mais de 200 jogos no mais alto escalão e, dos 52 golos ali feitos, nem FC Porto, Benfica e Sporting escaparam. Jogou na Liga Europa pelo Sp. Braga, clube do concelho que o viu nascer para o futebol, na freguesia de Fraião, de onde é natural. Apareceu no Caçadores das Taipas, numa carreira toda feita em Portugal. Em 2016, ponto final no Martim, em Barcelos, aos 41 anos. Pelo meio, Paços de Ferreira, Boavista, Leixões e Trofense.

Quem acompanhou o futebol português na primeira década dos anos 2000, reconhece José Manuel da Silva Fernandes. Zé Manuel, no mundo da bola. Aos 44 anos, relvados para trás. A estrada da vida é outra: é condutor numa empresa de transporte de mercadorias em veículos pesados. Para isso, obteve a carta de condução respetiva e o CAM – Certificado de Aptidão de Motorista.

«Quando fecha uma porta, tenta-se abrir outra. Quando acaba o futebol, não acaba o mundo. Antes de ser profissional de futebol, também trabalhei. Surgiu a oportunidade de trabalhar numa empresa de logística. Já lá vão quatro anos na mesma empresa e com gosto», começa por dizer, ao Maisfutebol, após um dia de viagens, quase sempre idênticas.

«Hoje fiz 420 quilómetros (risos). Quase dava para ir a Lisboa e voltar. Chego ao armazém, tenho as guias, vejo as encomendas, pego no camião e vou distribuir. Faço pela zona de Braga, Famalicão, Taipas. E de tarde vou até Vigo [Espanha], fazer dois clientes. Quem trabalha nesta área tem um senão, chega-se tarde. Mas sempre gostei de conduzir», descreve.

O futebol ficou para trás e só existe quando possível. Zé Manuel ainda joga na equipa de veteranos do Leões de Santa Lucrécia, em Braga, mas o fim-de-semana puxa outros gostos.

«Além do trabalho, de segunda a sexta, adoro a agricultura. Entretanto, as minhas possibilidades deram para comprar uma vinha quase com um hectare. Trato de tudo. Só vou às vezes ao futebol», conta.

Mas há mais. Zé Manuel admite que o futebol permitiu construir o «património» que lhe «saiu do corpo», com equilíbrio. «Só quem não tem juízo é que não consegue fazer um pé de meia em dez, 12 anos a ser profissional de futebol. Um dos hobbies que tenho e adoro é pescar. Comprei uma lancha e quando vêm as boas marés, pego no meu carrinho, engato o meu barco e vou pescar. Tive de tirar a carta de marinheiro. Quando gosto de uma coisa, se tiver disponibilidade, dinheiro que veja que não faz falta para os meus filhos ou para a casa, concretizo», garante.

Por todo o rebuliço semanal, Zé Manuel diz até ter saudade de um pormenor no futebol. «Acima de tudo, o tempo livre. Treinava de manhã e tinha a tarde por minha conta, para tratar de algum problema burocrático, de cortar a relva do jardim. Hoje, o tempo que tenho é ao fim-de-semana para a família», nota.

«Foi uma das jogadas que ficou para a vida e não fiz golo!»

O Paços de Ferreira projetou a afirmação de Zé Manuel no futebol português. E foi na Mata Real que mais épocas passou, cinco, com 148 jogos e 31 golos. Ainda assim, ao recuar às memórias nos castores, é uma jogada sem golo seu que vem à cabeça, contra o FC Porto, em maio de 2003.

«Marcar aos grandes tem outro espanto, firmeza, riqueza. Mas lembro-me de uma jogada em Paços - o FC Porto foi jogar uma semana depois a Taça UEFA em Sevilha e ganhou ao Celtic - em que ganhámos 1-0 com dez jogadores. Levei a bola de uma ponta à outra, o guarda-redes era o Nuno Espírito Santo, piquei a bola e quem fez golo foi o Cadú. Foi uma das jogadas que ficou para a vida e não fiz golo! Até tenho em cassete ou CD, foi magnífica», destaca.

Este foi um dos momentos de quem viu a carreira chegar da extinta III Divisão B à Liga em dois anos. Em 1998, subiu pelo Taipas à II B, onde se destacaria na época seguinte, com 19 golos no campeonato, números que despertaram atenções e José Mota - então adjunto de Calisto no Paços - a captá-lo para a Capital do Móvel, onde foi campeão da Segunda Liga na primeira época, em 2000.

«No Taipas, a época correu-me lindamente, surgindo vários convites na Segunda Liga. O Mota foi ver dois jogos e deu aval para me contratar. Optei pelo Paços e fiz bem, longe de saber que, passado um ano, estava na Primeira Liga. Longe de ter obsessão de ser profissional de futebol. Fui porque surgiu a oportunidade, naturalmente. Em 2000, estreei-me como jogador da Primeira Liga, onde permaneci dez anos, que passaram a correr», ilustra.

Por essa preponderância, não esquece o atual técnico do Desp. Chaves, que reencontraria em 2008, no Leixões, numa época memorável com o sexto lugar na Liga. «Fui para o Leixões porque o José Mota convidou-me para ajudá-lo. E eu “tudo bem, vamos lá”. Fizemos um ano magnífico. É marcante, porque se calhar não estaríamos aqui a falar, marcou como treinador e pessoa», admite.

Uma carreira que não deixa mágoa por não ter jogado no estrangeiro. «Podia ter surgido, mas não fico triste», aponta. Pelo meio, os senãos de um percurso peculiar. «Eu cheguei à Liga com 24 anos. Se chegasse com 20, se calhar não ficava por ali o currículo, teria passado por outros clubes. Às vezes é a oportunidade. Chegando, temos de agarrar com toda a força», defende. E foi assim que fez. Ontem no futebol. Hoje, fora dele.

De ponta a ponta: os inícios e as botas penduradas

Zé Manuel jogou futebol cerca de 25 anos. O trajeto começou aos 17, no Maikes Fraião, ao lado de casa. E algo ao acaso. A tal «oportunidade» natural.

«Eu nasci em 1975. No meu tempo, não havia formação como hoje. Era praticamente juniores e seniores. Comecei na minha freguesia e não pude assinar o meu primeiro contrato, era menor. Quem assinou foram os meus pais. Nesse primeiro ano em que joguei federado, a minha freguesia tinha dificuldades em arranjar jogadores. Fizeram captações e eu, como muitos, fui treinar ao sábado de manhã e fui surpreendido no final, se queria fazer parte do plantel para a época seguinte. Assim começou. Aos 21, tive o convite do Taipas. Antes, era sempre o melhor marcador da minha equipa», recorda.

Da escalada até ao topo competitivo em Portugal, Zé Manuel encarou com a mesma naturalidade o fim. Fez a última época nos campeonatos profissionais em 2012, no Trofense, ano em que voltou ao Boavista, no Campeonato de Portugal. Mais tarde, as divisões distritais, de novo no Taipas, até ao Martim.

«Eu questionava-me: só consigo jogar se estiver bem comigo mesmo. Quando acabei a carreira, tive convites para jogar. Disse que não. Não estava para mais sacrifício: pôr a pé às 7h30 e chegar a casa às dez da noite, não é vida. No inverno, praticamente não via os meus filhos. Quando vi que tinha uma vida não familiar, disse “chega”», afirma.

Depois das vivências, as memórias e os contactos. «No futebol, aparece tudo: os bons, os maus e os que não interessam. Mas os bons, guardamos os contactos. Aos anos que passei o primeiro ano nas Taipas [1997] e ainda hoje tenho contactos. De vez em quando, marcamos um jantar. Não é só chegar à Primeira Liga, ter fama e conhecer as pessoas. Antes já conhecia as pessoas nas Taipas e noutros clubes, tenho a mesma amizade e respeito», frisa.

Zé Manuel foi um «pé canhão» e veloz que deu dores de cabeça a muitos adversários. Hoje, o futebol, as estruturas, a preparação e os aspetos táticos parecem tornar raro o sucesso de jogadores como este minhoto teve em Portugal. É mesmo assim, Zé? «Há muitos jogadores melhores que o Zé Manuel (risos). Agora, se calhar chegar à Liga da maneira que cheguei, depressa, sem formação, hoje se calhar aparece um em 1000. A minha formação era faltar aos estudos para ir jogar com os amigos. Costumo dizer que não tenho os estudos, mas os estudos deram-me a formação de futebol», reforça.

A brincadeira no Trofense e a questão de treinador

Um quarto de século de balneários e relvados tem muitas histórias para contar e há uma que Zé Manuel recorda de um colega de equipa, no Trofense. «Ele era daqueles que falava mais e uma altura pegamos nele, metemo-lo na marquesa, fita isoladora, pernas e braços atados, levámo-lo ao campo, pusemo-lo em cima da linha de golo e pegamos em bolas e chutamos contra ele, na brincadeira», revela.

E se houve este Zé Manuel jogador, dificilmente haverá um treinador. «Muita gente questiona: "porque é que não estás num clube? Não queres ser treinador?" Eu comecei do zero, fui lá acima e, consoante a idade, vamos caindo. Quem vai de baixo, chega à Liga e torna cá abaixo e, depois de deixar de jogar futebol, começa a treinar clubes por baixo, é difícil. Não quero ser treinador, nem estar ligado ao futebol. Se alguém me fizer o convite, ainda penso duas vezes. Sei o que passei, as dificuldades. E hoje, no futebol, é meio mundo a lixar meio mundo. Percebeu o que quis dizer?», atira.

Assim sendo, Zé Manuel quer «muitos anos de uma vida normal» fora do futebol. Por estes dias, é provável vê-lo ao volante de um pesado do Minho à Galiza, nesta estrada da vida.

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