O futebol não tem o hábito de afamar os treinadores da formação, mas jovens como Trincão ou Pedro Neto devem a técnicos como José Carvalho Araújo parte do sucesso. Afinal, em dez anos de Sp. Braga, dos sub-13 aos sub-23, ajudou pérolas a transformarem-se em estrelas. E o presidente António Salvador só pode agradecer os quase 60 milhões de euros com vendas de jogadores da formação. Para José Carvalho Araújo, o futebol português deve olhar para a aposta do Benfica em Bruno Lage, mas para concretizar a sua ambição de trabalhar ao mais alto nível terá de mudar-se para outro clube. No Sp. Braga, diz ao Maisfutebol, está incrementada a cultura do ‘treinador ex-jogador’, como Rúben Amorim e Custódio Castro. 

Maisfutebol - Está de saída do Sp. Braga depois de 10 anos no clube. Qual é o proximo passo?
José Carvalho Araújo - A minha ideia e a minha ambição como treinador não estão compatíveis com o que o Sp. Braga me consegue oferecer, por isso a saída é uma certeza. Estamos à procura de projetos ambiciosos, algo que nos continue a desafiar, depois das duas últimas épocas nos sub-23. Estamos preparados para isso.

Futebol de adultos, portanto, depois de tantos anos a treinar jovens...
Sim, é isso. O Sp. Braga permitiu-me crescer muito como treinador, comecei nos sub-13, cheguei aos sub-23 e, agora, o que me desafia é conseguir trabalhar com homens. Ao longo da evolução que fui tendo, fui-me apercebendo de que quero trabalhar com homens, é isso que me motiva do ponto de vista intelectual. Ou seja, profissionais que percebem melhor as nossas ideias de jogo. Tenho conversado com alguns clubes, para fazer a transição entre a zona de conforto e algo fora da caixa, em Portugal, da II Liga, por exemplo, e de Ligas emergentes no estrangeiro.

É uma decisão que toma depois de não lhe ter sido dada uma oportundidade nos seniores no Sp Braga - leia-se equipa B ou principal. Ficou supreendido por ter sido Custódio a saltar dos sub-17 para a equipa principal, depois da saída de Rúben Amorim?
Não me estranhou o facto de o Custódio subir dos sub-17 para a equipa A, o meu patamar ainda não era esse, mas sim a equipa B. Por isso, estranhámos, sim, quando saiu o Rúben Amorim, em janeiro para a equipa principal, e a direção foi buscar o Vasco Faísca. Nada contra o Vasco, que é uma excelente pessoa e um treinador com competência, mas não tem currículo. Nessa altura, questionámos a decisão e disseram-nos que éramos mais importantes na formação e para ajudar na evolução dos jogadores jovens. O clube está a apostar naquilo que é o ‘treinador ex-jogador’, senti que o perfil ex-jogador, agora treinador, estava com muita força no clube e foi isso que disse aos responsáveis. É certo que o Rúben Amorim ou o Custódio viveram grandes momentos no clube, como jogadores, mas como treinadores não têm experiência. Eu deixei a carreira de jogador cedo, acabei por me formar, tenho mais experiência de treino do que eles, e digo isso sem qualquer desprimor. Mas, com todo o respeito, se esse é o caminho do clube, eu e a minha equipa técnica decidimos caminhar para outro lado.

Vamos olhar para os 10 anos na formação do Sp. Braga, que fazem do José um profundo conhecedor de um projeto em que sobressaem jogadores como o Trincão. Podemos dizer que o conhece como ninguém, certo?
O Trincão é daqueles que desde cedo se notou que era diferente. Agora é fácil falar, mas eu treinei-o nos sub-13 (!), e durante seis anos, por isso sei o que digo. Sempre mostrou uma enorme capacidade de trabalho, o que o diferenciava era a forma como ele enfrentava as coisas. Para ele, jogar futebol é um prazer, uma alegria, e isso é fundamental. Para o Trincão, é igual jogar com os amigos na rua ou com o Barcelona...

José Carvalho Araújo treinou Trincão durante seis anos

Parece que estamos a observar o lado psicológico do Cristiano Ronaldo...
Sim, é quase isso. E por isso é que ele é diferente dos outros, pela confianca que tem nele próprio, não é só capacidade técnica, é a capacidade de ir para cima do adversário, de o desafiar, de querer superar-se constantemente. Lá está, é igual jogar contra o Arsenal (Inglaterra), e fizemo-lo várias vezes, ou, logo depois, jogar com uma equipa do Distrital de Braga. A motivação dele é a mesma, porque quer superar-se, foca-se nele e não nos outros, não interessa quem está do outro lado.

Qual é a diferença entre o Trincão dos sub-13, com 12 anos, e do Trincão de agora, com 20, a caminho do Barcelona?
Claro que hoje está mais maduro, perfeitamente capaz de enfrentar o futebol profissional. Aquilo que mais tivemos de trabalhar com ele, ao longo da formação, foi ao nível do momento da decisão. A luta que tínhamos com ele era fazê-lo perceber que o campo não é todo igual, há zonas onde ele pode criar desequilíbrios, que podem beneficiar a equipa, e zonas onde esses desequilíbrios nos podem prejudicar. Não se pode arriscar perder a bola em certas zonas do campo, mas ele sempre teve uma capacidade de desequilibrar inata. Pessoalmente, dou-me muito bem com ele, ainda hoje temos uma relação fantástica e ele já me agradeceu a ajuda, claro... (risos). Ele reconhece que, sobretudo a esse nível da decisão das jogadas, aprendeu muito connosco. O reflexo de que o nosso trabalho é bem feito está no Trincão e em outros nomes.

Calculo que tenha ficado orgulhoso ao ver o «seu» Trincão transferir-se para um tubarão como o Barcelona e a render mais de 30 milhões de euros ao Sp. Braga.
O Barcelona sempre foi o objetivo dele, por isso, também sabendo a sua história de infância, é um orgulho enorme ter contríbuido para que ele tenha atingido um sonho de miúdo. Sinto-me muito feliz por ter feito parte desse processo e por ter ajudado o clube a ter um retorno financeiro fantástico.

Quando é que o Sp. Braga percebeu que tinha de dar o salto estratégico ao nível da formação para depois ter esse tipo de retornos?
O Sp. Braga começa a perceber que há muito talento quando, mesmo sem ter a Academia que tem hoje, o Pedro Neto acabar por render 16 milhões de euros, o João Queirós mais 3 milhões. Começámos a ver muito potencial para criar jogadores que, depois, poderiam ser para vender. O presidente começou a ter essa visão e investiu na Cidade Desportiva para passar a haver todas condições para desenvolvaer os jogadores. Por este caminho, não tenho dúvidas de que no futuro vão aparecer muitos mais com sucesso.

Alguns responsáveis da formação do Sp. Braga defendem que o clube tem a segunda melhor em Portugal, à frente de Sporting e FC Porto, por exemplo. Concorda?
Ao nível logístico, de condições e de infra-estruturas, sim. O Sp. Braga está ao nível dos melhores, tem uma Academia top e, tirando a do Benfica, que é maior, mas não é melhor, está ao mais alto nível. A Academia de Alcochete era fantástica, mas ficou ultrapassada, precisa de investimento - o que está a ser feito -, e o FC Porto quer fazer uma Academia também. A do Sp. Braga tem condições perfeitas e isso permitiu-nos dar um salto quantitativo enorme. Agora, em relação aos recursos humanos que estão nos clubes, a conversa é outra e não quero entrar em discussões sobre quem é melhor ou pior.

O Trincão é o exemplo máximo dessa evolução, mas há outros casos de sucesso, como o David Carmo, o Tiago Sá, que estão na equipa principal, ou o Pedro Neto, na Liga Inglesa...
Em relação ao Neto, eu fiz parte da equipa de ‘scouting’ que o foi observar quando ele andava nos pelados de Viana do Castelo. Mais tarde, trouxe-o dos sub-17 para os sub-19 para fazer alguns jogos. Também era um miúdo diferente e, passados estes anos, não tenho dúvidas de que é um jogador para a seleção A de Portugal. Tal como o Trincão, é um miúdo que desde cedo mostrou, pela forma como abordava o jogo e o treino, que não tinha problemas com nada, nem ninguém. Seja em jogos com o Real Madrid, Arsenal, ou do nosso campeonato. São jogadores que não tremem no momento de decisão, têm uma enorme confiança neles. Há atletas que vacilam na hora H e outros que têm a capacidade de tornar tudo simples e natural. O drible, a capacidade de fintar três ou quatro adversários, há muitos jogadores jovens que têm, mas há poucos que o fazem no momento certo.

Já falámos de jogadores que passaram da formação, com sucesso, para a equipa principal. Parece-me que está na moda fazer o mesmo com os treinadores, como o Bruno Lage, no Benfica, ou o Custódio, no Sp. Braga...
Nisso faz sentido apostar porque, cada vez mais, o futebol português é vendedor. Para que isso continue a acontecer, é preciso haver treinadores muito competentes, com capacidade de formar, de potenciar jogadores jovens, o que faz com o que próprio treinador seja um ativo fundamental num clube. Se nós reclamamos oportunidades para os jogadores jovens nas equipas principais, temos de os fazer também em relação aos treinadores. Ao nível do futebol profissional, há muitos jovens que, nesse momento, precisam de treinadores com a mesma mentalidade, que lhes saibam dar oportunidades, até porque um treinador que consegue potenciar um jogador num contexto de formação, também o consegue num patamar superior. O Bruno Lage é um grande exemplo disso mesmo. Há muitos treinadores na formação que merecem uma oportundiade ao nível profissional. O futuro tem de passar por aí, mais do que o treinador resultadista, por um treinador da aposta na formação e da evolução dos jogadores.

O Rúben Amorim também pode entrar nesse lote. Tem apenas 35 anos, chegou ao Sp. Braga com muito pouca experiência e transferiu-se para Sporting, rendendo dezenas de milhões ao clube...
Sim, claro. O que destaco no Rúben, nos meses em que trabalhámos lado a lado na Cidade Desportiva de Braga, é a forma positiva como ele encara as coisas: o treino, o jogo, o momento. Tem uma ideia muito bem definida do que quer, tem confiança, está consciente do que é. Destaca-se pela forma de estar, de ser, e de transmitir conhecimentos de uma maneira muito tranquila. Nunca opta pelo sentido negativo das coisas, não trabalha à base do berro, foi isso que mais me impressionou. Treinámos muitas vezes lado a lado, privámos algum tempo, e a essência dele era essa: positividade, dinâmicas de jogos muitos fortes e, no dia a dia, sempre muito aberto, disponível para falar, para partilhar ideias, de forma muito frontal. Gostei muito de trabalhar com ele.

E o que pode dizer em relação Custódio, que também saiu da formação para a equipa principal do Sp. Braga?
O Custódio trabalhava com os sub-17 de tarde, nós, sub-23, e a equipa principal de manhã, por isso andavámos quase sempre desencontrados. Posso dizer que é uma excelente pessoa, não consegui perceber muito em termos de treino, mas temos uma boa relação e acho que vai ter um sucesso brilhante.

Tendo em conta que é uma das pessoas há mais tempo, no ativo, na formação do clube, assume quota-parte do sucesso de um projeto que está a crescer a olhos vistos, e com 60 milhões de euros em vendas?
Sim, da geração de 1998, 1999, 2000, apareceram belos jogadores. Podemos partilhar, todos, esse sucesso, eu tenho a minha quota-parte. São 60 milhões de euros para o clube com a vendas de jovens dessa geração, é uma fatia muito importante nas contas do clube. Mas, mais do que isso, é o mostrar que é possivel transformar os objetivos, que é possível potenciar ainda mais este projeto de muitas etapas.

E quem será o próximo caso de grande sucesso?
Aposto as minhas fichas no David Veiga, que está nos sub-23, é de 2000. Na geração de 2001, diria o Hernâni Infande.

Voltar ao Sp. Braga, um dia, para a treinar a equipa principal, é um objetivo de carreira?
É um sonho sim. Joguei no clube até aos sub-19, depois treinei no clube dos sub-13 aos sub-23, ou seja, quase todos os escalões, sou natural de Braga, adepto do clube, por isso claro que gostaria de voltar à cadeira de sonho.