Arrecadado o segundo Brasileirão em quatro anos, além de duas Libertadores, uma Taça e Supertaça do Brasil, e ainda uma Recopa e dois campeonatos paulistas, Abel Ferreira já cravou o nome entre os melhores técnicos estrangeiros a trabalharem no futebol brasileiro. Pelo Palmeiras, o português tem por cumprir o sonho de conquistar o Mundial.

Nas derradeiras semanas da época, Abel Ferreira mostrou-se agastado com os media brasileiros, as condições dos relvados e as longas viagens, admitindo estar de «saco cheio». Aliás, as críticas do técnico português – que não esquece os dirigentes do campeonato e do próprio Palmeiras – são imagem de marca do agora bicampeão do Brasil.

Estará, então, o timoneiro luso preparado para um desafio na cúpula europeia? Será já maior do que o Brasileirão?

«O Abel ajudou a elevar o nível do campeonato, pois o Brasil tinha um défice de compreensão teórica do jogo», começa por esclarecer Paulo Vinícius Coelho (PVC), jornalista no UOL e no grupo Paramount.

Em chamada com o Maisfutebol, desde São Paulo, o jornalista identifica diferenças que permitiram a Abel Ferreira complementar o legado construído por técnicos como Bella Guttman, Otto Glória, Luiz Felipe Scolari e Jorge Jesus.

«O Abel, ao contrário do Felipão – que tinha uma compreensão muito boa do jogo, mas com métodos mais antigos – assume o risco com posse. E é também melhor que o Jorge Jesus na compreensão teórica e tática», analisa o jornalista, lembrando que o técnico do Palmeiras desafiou os jogadores a serem versáteis. E quem não se adaptou a novos terrenos do campo – como o médio Gustavo Scarpa – acabou relegado, sublinha PVC.

Outro trunfo no reportório de Abel Ferreira são as sucessivas épocas de sucesso, acrescenta Danilo Lavieri, colunista no UOL. Desde São Paulo, o jornalista recorda ao Maisfutebol que o timoneiro adaptou-se rapidamente ao clube e soube escolher que «lutas deve travar» no Brasil.

«O Abel provou ser o treinador estrangeiro mais importante [na história do Brasileirão] pelo que conquistou, até porque ficou mais tempo que Jorge Jesus, que fez o Flamengo jogar bem em 2019, como não se via há muitos anos. Mas ficou pouco tempo, faltou provar que aquela não seria uma época irrepetível», justifica Lavieri.

Hora de descansar e apontar ao futuro

Questionados sobre uma eventual saída de Abel Ferreira, os jornalistas apresentaram perspetivas distintas. Se, por um lado, PVC não considera surpreendente o técnico aceitar uma proposta oriunda do Qatar, Danilo Lavieri, por sua vez, critica esse rumo.

«Pelo dinheiro, pode fazer sentido, mas pelo perfil altamente competitivo do Abel, no Qatar não terá qualquer tipo de desafio, os jogos parecem os nossos universitários – que na verdade até têm mais pessoas nas bancadas», argumenta o colunista, entre risos.

Para PVC, o técnico deverá priorizar o descanso e delinear, sem pressão, o próximo passo: «Tem o direito de definir o seu futuro e levará sempre a gratidão que sente pelo clube. Pode até sonhar ser campeão de Portugal pelo Benfica, Sporting ou Penafiel [de onde é natural]». Em todo o caso, ressalva o jornalista, Abel poderá optar pelo «desafio da redundância e do dia a dia», ambicionando repetir feitos e conquistar o Mundial, em 2025, para o qual o Palmeiras está já qualificado.

Entre o Qatar e a repetição no Brasil, um treinador europeu tão valorizado na América do Sul não mereceria um convite aliciante no velho continente? A cotação destes técnicos no mercado internacional é menor, lamenta Lavieri, lembrando o trajeto de Marcelo Gallardo, que recentemente trocou os argentinos do River Plate pelo campeonato saudita.

Entretanto, nas redações brasileiras prosseguem as tentativas de descortinar o futuro do Palmeiras e estudar os eventuais sucessores de Abel Ferreira. Se, numa primeira fase, o nome de Pedro Caixinha foi incluído na lista, essa hipótese caiu depois de o português renovar vínculo com o Bragantino. Por isso, os jornalistas vivem também na expectativa de uma surpresa: «Quando o Abel veio, não se falava dele, poucos o conheciam», recorda PVC.

Do trabalho de casa à prata da casa: o legado de Abel

O palmarés do “verdão” espelha o efeito Abel Ferreira. À boleia de PVC, um arquivo de viva voz, importa recordar que entre 1977 e 2014, o Palmeiras conquistou 11 títulos. Nos últimos oito anos, o “alviverde” arrecadou 13 troféus, nove dos quais com o timoneiro luso.

«O Palmeiras aprendeu a ter respeito pela própria história, a organizar-se e a descobrir talento. Nunca tiveram tantos jogadores seniores (14) formados no clube. Esta organização permite formar, investir e escolher os melhores.»

Mas o progresso remonta a 2020, quando o "professor" chegou ao Palmeiras com a lição bem estudada quanto à nova casa e respectiva «torcida».

«Ele estava completamente informado. E os media disseram: “ele sabe onde está”. Claro, ele fez o trabalho de casa. Isso deveria ser obrigatório e o Abel surpreendeu o país», descreve PVC, destacando a paciência do técnico para implementar e aprimorar as ideias de jogo e encontrar alternativas às bolas paradas.

Neste caminho percorrido por Abel Ferreira – e respetiva equipa técnica – há dicas, táticas e estruturais, essenciais ao futuro do futebol carioca: «O Brasil tem condições financeiras para revelar talento, mantê-lo e continuar a valorizar. A diferença está na cultura. O jogador local convenceu-se que tem de jogar na Europa, porque nos últimos 20 anos não tivemos uma Liga com qualidade suficiente. Estamos a dar passos lentos. Se houvesse esse nível de relevância, o Abel nem ponderaria sair», remata Paulo Vinícius Coelho.

Quanto aos pilares no jogo do Palmeiras, os entrevistados apontam Vanderlan, Zé Rafael e Gustavo Gómez como potenciais jogadores a seguirem com o Abel Ferreira para novas paragens. O jovem avançado Endrick, de 17 anos, ficou, naturalmente, fora desta equação, uma vez que tem transferência acertada para o Real Madrid, em agosto de 2024.

2023 em resumo: o elo entre Abel e Endrick apenas faltou na Libertadores

Na avaliação da temporada, apesar da conquista do Paulistão e da Supertaça, além da recuperação épica no Brasileirão, os dirigentes do Palmeiras recordarão a saída precoce da Taça do Brasil, nos quartos de final, diante do São Paulo, que conquistou o torneio. Mais impactante foi a eliminação nas meias finais da Libertadores, no desempate das grandes penalidades, ante o Boca Juniors.

«O Abel demorou a dar mais oportunidades ao Endrick. Depois do arranque da época, o jovem avançado foi encostado e só quando o Dudu se lesionou é que o Endrick voltou, depois de alguns testes e ajustes táticos. Essa hesitação custou, por exemplo, a final da Libertadores. Poderia ter sido um ano ainda melhor se o Abel percebesse o lugar do Endrick mais rápido», conclui Danilo Lavieri.

Em suma, 73 jogos depois, Abel Ferreira encerra o ano com três títulos e 41 triunfos. Na visita ao Cruzeiro, o Palmeiras confirmou o bicampeonato. Quem sabe, por esta hora, Abel Ferreira seja um homem mais descansado, depois dos meses «mais difíceis» desde a chegada ao "verdão", em 2020, como admitiu o adjunto Vítor Castanheira.

Logo após a conquista do título, Abel Ferreira disse à Globo que se sente «cansado» e precisa de férias. O Palmeiras regressa à competição a 17 de dezembro, a contar para o Paulistão.

Quanto ao futuro, e entre especulações já habituais, a bola está agora do lado de Abel Ferreira, que tem duas opções: anunciar o fim desta primeira aventura pelo Brasileirão ou decretar o “dia do fico” para 2024.