Arte, coração e casualidade. Um jogo não pode ser cifrado em linguagem binária, de 0 ou 1. Sim ou não. Bem ou mal. O futebol é um conjunto de realidades alternativas, que disparam em várias direcções de cada passo, remate ou pensamento. Um labirinto de possibilidades, sem uma corda que nos ajude a voltar à encruzilhada anterior, nessa fuga ao medo de errar, o grande Minotauro. O herói pode vestir a mesma pele do que o fracassado, o derrotado pode reclamar a instabilidade sobre a qual se levanta o mais adorado das bancadas. A fronteira é quase invisível, apenas um conceito que escapa à matéria.

Só os verdadeiros craques conseguem segundas oportunidades. Seis anos depois de, com uns imaturos 19 anos, ter tentado uma primeira versão do Golo do Século, Maradona decidiu dar um final diferente ao truque de hipnotismo e fintou Shilton em vez de rematar como fizera nesse particular de Wembley. O mundo pôde ver no México que, afinal, havia uma catarse para aquela sucessão de toques curtos, um ziguezague eloquente que hoje gostamos de mostrar aos nossos filhos, com a pele arrepiada como se fosse em directo, de cada vez que usam o DVD para fintar a História.

O que seria de Madjer, o melhor estrangeiro que se viu por cá, se naquele toque de calcanhar tivesse tropeçado, atrapalhado uma perna com a outra, acertado num adversário, enfim perdido a grande oportunidade de dar a lógica sequência à avalanche portista no Prater de Viena? Isaías tornar-se-ia tão compreendido na exigente Luz se não acertasse de vez em quando naqueles remates de todos os ângulos, muitas vezes sem sentido, quase disparatados, que soltava jogo após jogo? O que seria de Portugal em 66 se Eusébio não tivesse sido tão grande como o seu nome frente à Coreia do Norte? Que Selecção teríamos em 2000 se aquele míssil de Luís Figo não tivesse desviado na perna esquerda de Tony Adams antes de deixar Seaman a olhar para a «gaveta»?

Às vezes, todos nós somos demasiado dogmáticos nas nossas opiniões, demasiado definitivos sobre as escolhas que se fazem sobre a relva. Chateia-me que um árbitro erre numa simulação, numa falta, só porque não teve talento para experimentar aquelas sensações como actor principal. Ou que um jornalista ou leitor tentem fazer vingar uma ideia sobre um jogo só porque a dissecaram de frente e do avesso, e acham que não pode haver outra explicação para o que se passa à frente dos seus olhos. A verdade, a minha, e embirro com quem me aparecer à frente, é que um futebolista é a soma em partes iguais de talento e confiança. Porque jogadores medianos já mostraram poderes de super-herói e verdadeiras estrelas ficaram sem coroa e manto em momentos decisivos. Qualquer alemão é um bom exemplo de que uma mente sã faz milagres.

Cada golo é uma soma de demasiadas variáveis. Demasiadas opções, de 22 jogadores, três árbitros e dois treinadores, e um público mais ou menos numeroso na plateia. Uma partida começa muitos dias, algumas semanas antes, é influenciada e moldada de todas as maneiras e feitios. Cada decisão encontra no seu caminho «ses» a mais. Em campo, se Maradona tivesse passado a Valdano, se Figo acertasse na trave, se Kouba não largasse aquele remate de Bierhoff o mundo hoje em dia seria diferente. Não melhor ou pior, apenas uma realidade feita de outros factos.

Todos partem nessa maratona que é uma carreira de futebolista. Os grandes, os realmente grandes, sobrevivem a todos os obstáculos, a todas as decisões, ficam gravados na memória colectiva por terem feito quase sempre tudo certo. Só por isso são grandes. Arte, coração e casualidade. E, a nós, meros mortais, só nos resta engrandecer o seu nome e perdoar aos outros, aos que foram vítimas do acaso ou da falta de confiança ou talento. Porque o jogo também é deles.

«Era capaz de viver na Bombonera» é um espaço de opinião da autoria de Luís Mateus, editor do Maisfutebol, que escreve aqui às terças e sextas-feiras