Olhos cerrados, pernas amarradas ao peito pelos braços, cabelos desgrenhados ao vento, sentado num campo de trigo. O nosso craque, herói de Shaolin, prepara-se para feitos sobre-humanos. Procura inspiração no labirinto da mente. Sabe que com concentração, se for matéria e espírito ao mesmo tempo, poderá fazer coisas que mais ninguém consegue. Como o maratonista a dois quilómetros da meta, luta contra os seus limites. Seja uma finta de letra de Ronaldinho ou um míssil de Seedorf, há que alcançar o inatingível. Superar-se. Basta um centésimo a menos ou o golo que mais ninguém marcou.

Em 1978, na Argentina, o Brasil defronta a Polónia, já de Boniek e ainda de Lato. O eterno ídolo do Vasco, Roberto Dinamite, depois de ter visto, na mesma e longa jogada, duas bolas a abanar o poste esquerdo e uma em cheio na trave, acreditou que só havia um sítio por onde a bola podia entrar. A baliza estremecera com o último embate, dera dois passos atrás e ainda recuperava, em esforço, a posição. Mas ele nunca foi de esperar por oportunidades, ou não se consagraria como maior goleador do seu país. De primeira, sem preparação, rematou. Kukla ainda se virava, depois do estrondo metálico, quando a bola lhe passa outra vez pela direita. Gooool!

O pé direito de Van Basten encaixa na perfeição com o volley. Dez anos depois, na Alemanha, o tempo volta a parar. Suspende-se como em Matrix, frame-by-frame. A bola deforma-se, transforma-se em ovo de Colombo, e desenha espirais perante o melhor guarda-redes do mundo, um russo herdeiro de Iashin chamado Dasaev. Sobe o suficiente para passar o obstáculo, desce depois, como montanha-russa. x=xo+vo.cos z.t e y=yo+vo.sen z.t-1/2g.t². Torna-se obsoleta a fórmula da trajectória. À posição e velocidade iniciais, a senos, cossenos e ao tempo, havia que somar talento e confiança. Dasaev dá dois passos titubeantes para trás, sem cair. Como se o mundo tivesse mudado de perspectiva e os dogmas caíssem por terra com o abanar das redes.

A 3 de Junho de 1997, no Stade Gerland, Roberto Carlos tem um livre em zona frontal. Do outro lado da barricada está o senhor das balizas do futuro campeão do mundo e da Europa, Fabien butterhands Barthez. O brasileiro explode de trivela e a bola vai fora. Por muito primeiro, por menos depois, por pouco, afinal. Ainda fora. A dois metros, descreve uma última curva, bate no ferro esquerdo e entra. Inacreditável! Em Fevereiro do ano seguinte, o lateral ameaça despenhar-se contra os placares, lado a lado com a linha lateral e a um passo da de fundo, mas faz de um ângulo de 0,8 graus o caminho mais curto para baliza do Tenerife!

Quase tão impossível e contranatura como o golo de Bergkamp em Newcastle, em Março de 2002. Toque com a parte errada do pé, saída do pelo lado errado do grego Dabizas, o aguentar do choque e a finalização simples. Ou tão complicado como o abater da Itália no Euro-2004, em pleno Dragão, pelo calcanhar em Ibrahimovic, com o enorme Buffon a adivinhar tudo, nas suas costas, e Vieri, desamparado a tentar evitar, sobre a linha, o empate. Os italianos passariam a vê-lo de perto, pouco depois, na Juventus e a seguir no Inter, e a qualificar as suas jogadas de Ibracadabra.

Se há talento que reinvente novas definições para as palavras é o de Ronaldinho. O brasileiro sempre conseguiu fazer de uma final um campo de treinos, com um sorriso nos lábios e gestos de hang loose com os dedos. Nas costas dos centrais, domina de peito, a bola sobe e foge-lhe para as costas. Em plena época 2006/07, o Barca já vence o Villarreal por 3-0. A reacção é imediata, o pé esquerdo levanta-se e segue-se o direito. Nem Unzaga, nem Leônidas, inventores da chilena e da bicicleta em países diferentes conseguiram algo assim. Impossível? Não para a humanidade.

«Era capaz de viver na Bombonera» é um espaço de opinião de Luís Mateus, editor do Maisfutebol, que escreve aqui todas as semanas.