Pousa o monociclo junto à plataforma, ajeita a gola, puxa as meias até ao joelho. Olha para baixo, não há rede. Sobre o arame, presos com arneses à cintura, estão quatro defesas de tamanho XXL, autoflagelados para se manterem despertos para o que se vai passar a seguir. Pedalada e fujo pela direita do primeiro; simulo com o corpo e passo pela esquerda do segundo; ao terceiro meto-lhe um túnel; e à frente do quarto, o guarda-redes, fecho de trivela. É isso, repete. Pedalada e fujo pela direita... Ao primeiro passo, o arame balança. Coragem. Não olhes para baixo.

No futebol foram implantados triângulos e losangos, formas geométricas rectas, afunilando-o. Os treinadores preferem a interioridade e adaptar avançados para desenhar diagonais de fora para dentro. Recortaram os vértices do largo rectângulo de relva, que virou um octógono de becos sem saída para quem aí pisa. Todas as jogadas têm de fazer parte do mesmo algoritmo. Sim, todos os movimentos são parte de uma sequência finita de instruções para chegar a um fim. O golo. Ou à sua negação.

O jogo perdeu espaço e tempo para Quaresmas, Joaquíns, Denilsons, Vicentes, Reyes ou Overmars. Os wingers que sobrevivem são aqueles que ultrapassam a sua condição, fogem ao estereótipo, ganham ambição. Os outros, os que usam um barrete negro a cobrir-lhes a face e fazem de um clip perdido uma gazua para arrombar as defesas adversárias, acabam aprisionados e esquecidos à margem do campo. A data limite de validade é demasiado curta. Cristiano Ronaldo teve de ser maior do que George Best, de chegar onde Ryan Giggs, o galês anti-arritmias, não chegou. Teve de marcar ao ritmo de Dennis Law e Van Nistelrooij. Será que alguém o vê ainda como extremo?

Arrigo Sacchi, o entediante director de orquestra que transformou o Milan numa máquina trituradora, mas também muitas vezes soporífera, coloca a questão mais ou menos neste ponto: um jogador não se deve mover de acordo com o que acha que deve fazer, mas sim tendo em consideração a posição da bola, dos companheiros, o espaço e os adversários. Esta é a Lei Sacchi. Os génios são esses funcionários públicos, de protectores de antebraço e pala na cabeça, em fábricas de produção em série. Confere, carimba, assina, empilha. Confere, carimba, assina, empilha. Confere... Os outros, todos os outros, são jogadores comuns. Vulgares. Como Quaresma.

A verdade é que o Mustang, talvez a alcunha que melhor lhe assenta, é tudo menos isso. Um cavalo selvagem que pode ser (e já foi) domado. Que precisa de que lhe lembrem, todos os dias, que há limites para a liberdade, mas que o deixem correr, de vez quando, ao sabor da vontade. O ser tão diferente de todos os outros torna-o demasiado especial. Só que uma finta tem tanto de belo como de risco, um mau domínio carrega o peso de mil olhares críticos, um remate disparatado atinge os adeptos no diafragma, faz com que saltem do banco e vomitem insultos. É alvo de todas as críticas quando algo não corre bem, mas vira herói depois do golo dos golos.

A visão invertida do italiano não é de todo errada. Coragem. Não olhes para baixo.O extremo portista é mais um driblador do que qualquer outra coisa. Um trapezista, um acrobata, um domador de leões, que em cada espectáculo faz o seu número e sai aplaudido, orgulhoso. Há jogos que precisam dele como de mais ninguém, outros que lhe podem passar ao lado. Quaresma tem tudo para dar certo com o treinador correcto. Precisa de optimizar o seu dom e, quando o conseguir, talvez seja mais jogador do que extremo. É isso, repete. Pedalada e fujo pela direita... Mas tem igualmente de estar preparado para isso.

«Era capaz de viver na Bombonera» é um espaço de opinião de Luís Mateus, editor do Maisfutebol, que escreve aqui todas as semanas.