Freestyle. Ele e uma bola. Cenários de cinema alternados nas suas costas, como se mãos invisíveis os empurrassem da esquerda para a direita até saírem do ecrã. O Olímpico Monumental e Porto Alegre, o Parque dos Príncipes e Paris, Camp Nou e Barcelona, uma rua com obras a meio, uma praia e miúdos a ver, um campo de treino e uma baliza ao longe. Ele e a bola, juntos, e um sorriso nos lábios. Sempre. O riso em vez da decepção de um golo perdido, e o havaiano shaka com os dedos, o gesto de surfista a revelar o segredo. O seu.

Ele e a bola. Juntos. Inseparáveis. A pressão esmagadora de Stamford Bridge, com Mourinho pronto a derrubar a mais talentosa equipa do planeta como fizera com tantas outras, não lhe tranca o sorriso na boca. Três a um, um a três no seu ponto de vista. Contém a finta na anca direita e o pé encosta na bola, como uma faca a entrar-lhes no flanco, fria, dolorosa e fatal. De Ricardo Carvalho, que lhe parara à frente; de Cech, que não adivinhou o ângulo reduzido; de uns Blues de azul retocado, brilhante e orgulhoso, dispostos a figurar de vez entre os maiores no jogo.

O Barça ainda não era então a melhor equipa. Essa era a diferença. O Chelsea dobrava-se para a frente com o golpe, de mão sobre o estômago, mas conseguiria cambalear até ao golo decisivo, o sexto dessa noite louca de Londres, apontado por Terry. Ronaldinho, pelo contrário, já o era. O melhor. Dois anos de grande nível levaram-no à consagração de World Player of the Year. Em 2005/06, Mourinho não conseguiria repetir a vitória estrondosa. Nessa altura, como nunca antes e poucas vezes depois, o clube que é més que un club e Ronaldinho viviam em simbiose perfeita. E nem o Arsenal impediria que manto, ceptro e trono lhes fossem entregues em Saint-Denis.

O discípulo de Pelé e Maradona, o novo deus das fintas, dos golos magníficos, atracção de multidões, pisava o topo da montanha. Plantava a sua bandeira no cume e, ao mesmo tempo, mantinha os olhos na bola, dividida por milhares de gingas, de engodos, rotinas treinadas até ao limite para parecem improviso. A consagração era total. Os truques multiplicaram-se nos anúncios. Joga bonito repetiu-se tantas vezes que se tornou lema, marca de um talento enorme. Confundiu-se a realidade com o retoque das câmaras, desnecessários para o melhor «R» da história do Barcelona.

O símbolo do sucesso tornou-se, ao mesmo tempo, causa da queda. Ao não ter nada mais a ganhar, mais difícil se tornava continuar no topo. Aquele shaka surfista de polegar e mínimo esticado, símbolo de serenidade e alegria, que lhe retirava a pressão de um planeta inteiro perante as circunstâncias mais adversas, roubava-lhe também a persistência e a ambição dos que lutam eternamente pelo número 1. O organizado Guardiola, que em campo sempre gostou do rigor e do equilíbrio, precisava de renovar a agressividade dos seus homens. Para voltar a ser grande, o Barcelona não podia ter a imagem hang loose do brasileiro.

Ronaldinho também precisava de recomeçar. De experimentar sensações antigas, de voltar a ser adorado da cabeça aos pés. De fazer piscar a primeira página de um site só com o seu nome. Néon dourado no negro milanês. Repisar as suas pegadas, recuperar o sorriso, ganhar de novo a amizade da bola, outra vez no sopé da montanha. Ele merece o Milan e um campeonato novo para conquistar, e o jogo merece que ele esteja de volta, ainda na posse de todas as suas faculdades. O calcio vai ganhar um sorriso bem rasgado. Voltará a encher o campo só com uma jogada, será de novo razão para encher estádios. Apenas isso. Sem mais exigências. O futebol não precisa que volte a ser o melhor do mundo, apenas que seja Ronaldinho. É como dizes. Diverte-nos, Rô!

«Era capaz de viver na Bombonera» é um espaço de opinião de Luís Mateus, editor do Maisfutebol, que escreve aqui todas as semanas.