[Artigo publicado originalmente a 20 de Dezembro de 2012]

«Ai rapaz que te partes todo!». Respondia com a mente, um nada disso convencido, enquanto empurrava o carro outra vez por aquela íngreme subida em paralelo. Aquela rampa era multifacetada. Tão depressa fazia de alto da Senhora da Graça, nas corridas de bicicleta, como de campo de futebol (o mais inclinado de sempre) ou de uma autêntica pista de Fórmula 1. O segredo era o de sempre: imaginar.

E aquele carro, uma das primeiras prendas que me lembro de apreciar verdadeiramente, era um motivo perfeito para sonhar. Eu chamava-lhe, vulgarmente, o «carro de andar dentro». Coisas de crianças, sempre a ver o óbvio: haveria lá melhor nome para um carro onde era suposto entrar e dar aos pedais para aquilo andar?

Mas o que para mim era o «carro de andar dentro» para quase todos era o «carro do Senna». Os meus primos faziam-me o retrato perfeito. «É mesmo o carro do Senna. Branco e vermelho, com o número 1». Eu ouvia, espantado. Melhor ainda. Era o «carro de andar dentro do Senna», então.

Pormenores. Eu queria era levá-lo até ao topo da rampa e descer a toda a velocidade. Os pedais andavam sozinhos, só tinha de segurar o volante para não bater nas paredes. Era o meu Grande Prémio do Mónaco. Quando a minha mãe via lá gritava: «Ai rapaz que te partes todo!». Eu sorria, empurrava o carro e dava a vez a outro.

Nasceu assim o gosto pela Fórmula 1. Se tinha o carro do Senna fazia sentido querer saber quem era o Senna. Uns diziam-me que ele era o melhor. Outros que era bom, mas não melhor que o Prost. Que o Prost ganhava mais, era mais inteligente.

Mas o Senna falava como as personagens da novela e eu gostava disso. Decidido. Eu era do Senna, definitivamente. Gostava só um bocadinho do Prost, se ele ganhasse. Ser criança tem destas vantagens.

Aquele 1º de maio, por isso, bateu-me forte. O «carro de andar dentro» já era uma recordação. O plástico rompeu de vez de tanto raspar no paralelo. Mas a Fórmula 1 era uma realidade. Lembro-me de a cozinha de minha casa estar num silêncio sepulcral enquanto na televisão passavam umas imagens de helicóptero. Algo tinha corrido mal. Não era preciso ser muito experiente para o perceber.

A partir daquele dia disseram-me para esquecer o Senna e arranjar outro ídolo. A lenda do Senna terminava. Não foi difícil perceber que, afinal, só estava a começar.

Ayrton Senna não foi o piloto que ganhou mais títulos, nem o que ganhou mais corridas. Mas, ainda hoje, é recordado como o melhor de sempre. As suas façanhas viraram lendas. «Lembras-te quando arrancou de quinto e já era primeiro no fim da primeira volta?». «Lembras-te quando ele ia ganhar o campeonato e o Prost atirou o carro para cima dele? E no ano seguinte ele pagou-lhe na mesma moeda?».

Eu não me lembro de assim tanta coisa, confesso. Mas lembro-me do meu «carro de andar dentro do Senna». E lembro-me da sensação de agarrar aquele volante com as forças que tinha enquanto descia vertiginosamente e sentia cada paralelo a desgastar, milímetro a milímetro, o plástico dos pneus a fingir.

Lembro-me daquele número 1 vermelho, colado no «bico» e dos patrocínios ao tabaco na asa traseira. Lembro-me de chegar a casa e perguntar: «Ganhou o Senna?». Lembro-me de colar em frente à tv e vê-lo abrir o champanhe.

Hoje sei que o que eu fazia naquele «carro de andar dentro» era um risco enorme, daqueles que ficaram escondidos numa gaveta do início dos anos 90. Mas tinha de ser assim. Se eu não corresse riscos, não era o Senna. E, descobri depois, eu não queria mesmo ser mais nenhum.

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