Era como se gigantescos deuses do futebol tivessem garantido lugares na primeira fila à volta do estádio, agora mesa de pimbolim com jogadores pintados a vermelho portuga e amarelo escrete. Um a um, lado a lado, como budas esculpidos de ar, estão disfarçados para não causarem perturbação no samba das bancadas lá em baixo. Que ninguém perceba que há mais do que talento a definir as jogadas! Não! Outra vez? Reclina-se para trás, recusa-se, coloca o cachecol à volta do pescoço, solta uns papelinhos sobre o estádio em concha, fecha os braços num abraço a si próprio e olha para baixo, à espera do pontapé de saída. Não contem comigo! Só vim cá ver a bola!

O golo de calcanhar de Danny deixa em suspenso o movimento das ancas das mulatas! Mas o «Fabuloso» Fabiano faz com que nos hipnotizem outra vez! Como a havaiana no tablier de um Cinquecento. Mais um! Outra vez Fabiano! Cristiano Ronaldo a tentar rodear Maicon, Robinho a levar atrás o sôfrego Pepe, Deco emparedado entre Anderson e Gilberto Silva, Danny a vaguear longe dos confrontos com Luisão e Tiago Silva. Kaká a transpirar classe a cada passo, Deco muito mais tímido do que depois do apito. Ruborizado, triste, deslocado no seu país de nascimento. É o samba, Deco, lembras-te? As bancadas enrouquecem à meia hora, pouco preparadas para tanta velocidade, para tanto grito. Estão loucos?

Fabiano chama Maicon à área. Toda tua! O lateral embala e no último momento enrola a bola de trivela e engana Quim. No último momento, a bo-la cur-va em câ-ma-ra len-ta. Lá em cima, todos se olham. Da direita para a esquerda, as pupilas dilatam debaixo das barbas esbranquiçadas. O que assobia com descontracção, entre os goles de cerveja, percebe que todos os outros olham para ele. Levanta as mãos espantado e jura por todos os santos. Não fui eu, não tenho nada a ver com isso! Tal como há 38 anos, Maicon tem tanto direito ao seu puta-que-pariu como teve Carlos Alberto na final do Mundial. Que monumento, um golo fantástico! Ei, não é esse aí o melhor do mundo, não...

O hat-trick de Luís Fabiano faz estalar olés nas bancadas, silenciados depois com o golo de Simão. Maniche irrita-se com as pernas de Elano, Elano fica furioso com a baliza de Quim. Queiroz já tinha levado antes as mãos à cabeça, agora vê o guarda-redes voar sem nexo, desamparado, e o míssil do Citizen faz baixar a vergonha como cortina sobre os jogadores.

Cristiano Ronaldo parece ter perdido a aura de melhor do mundo. O resultado é pesado, duro, mas não terá sido sempre possível com tanto talento em campo? Haveria portugueses que não o temiam? Já não há olés, o jogo parece ter acabado. Esperem, vem ainda Adriano, com a vontade de vingar-se de Mourinho em todos os portugueses. Estes 11 servem! Cruzamento. O estádio suspenso. Ninguém respira. Adriano salta nas costas do distraído Bruno Alves e cabeceia. Nas rádios, só se ouve o som ambiente durante uns centésimos. Golo, claro! Só podia ser. 6-2.

Os deuses levantam-se histéricos e correm para os seus lugares. O que foram eles fazer? Sinto-me cansado, esmagado mas também feliz por ter visto magia. Cheio de raiva por nos terem serrado a nós ao meio. Da próxima avisem, sim? É que não vamos. Robinho parece que me ouviu e ainda volta atrás. O árbitro já vai para os balneários, com companheiros de equipa e adversários. O moleque quer deixar o punch line depois de uma exibição fantástica. Chuta uma bola para o público e sorri. Está feliz, claro. Volta as costas, mas ainda olha uma última vez, de sorriso rasgado. Obrigado por nos terem deixado brincar!

«Era capaz de viver na Bombonera» é um espaço de opinião de Luís Mateus, editor do Maisfutebol, que escreve aqui todas as semanas.