Sem saber bem como, aprendeu. Leva a bola no peito do pé esquerdo como se fosse algo natural, uma extensão do corpo, flectindo ligeiramente o tronco naquele momento de indecisão, naquele instante em que tem de escolher se a passa e foge ou se foge com ela. Chega à linha branca e remata. Sempre assim, de trivela, porque a perna, desde que nasceu, inclina-se um pouco para dentro.

Olha para mim agora, triste, porque o obrigam a fazer algo que não percebe, a recuar com a bola aos saltinhos, em vez de correr como o miúdo que é para a baliza. Quer fazer o golo da sua vida, mesmo que tenha segundos de validade, apenas até ao próximo tiro extraordinário, depois de driblar onze adversários imaginários e ouvir em surdina os milhares que só vão estar daqui a uns anos nas bancadas.

Ainda não tem seis anos e já lhe colocam regras, limitam-lhe o espaço por onde crescer. Ainda não tem seis anos e fintar já é um exercício, algo que se pratica, quando antes se divertia a enganar o irmão dois anos mais velho, com mudanças de velocidade previsíveis mas eficazes, sempre pelo mesmo lado, como um Paneira visto por meio de um espelho, a conduzir pelo lado contrário do campo. Ainda não tem seis anos.

Não sorriu uma vez, festeja os golos com explosão, libertando-se de todo o constrangimento que carrega às costas. Nem após a melhor finta do mundo ou qualquer coisa parecida, depois de rodar 360 graus sobre si mesmo e ter feito a um arqui-rival um túnel incrível com o calcanhar e a força de vontade, Riquelme ri. Nem um sorriso a levantar o canto dos lábios como uma carta de poker que se espreita apenas, com medo de se denunciar. Nada mais do que dentes cerrados e o olhar em frente, na direcção da vitória.

Boca es nuestro grito de amor

Boca nunca teme luchar,

Boca es entusiasmo y valor,

Boca Juniors... a triunfar...


Penalty de um Postiga armado em Panenka, ao meio da baliza de Calamity James. O rosto fechado de Deco, compenetrado como sempre, abre pela primeira vez em anos. Eleva as mãos acima da cabeça e bate palmas como alguém que acabou de ouvir o Monty Phyton John Cleese dizer I¿m afraid not, I¿m afraid all the vacancies were filled several weeks ago, em Silly Job Interview. Um, dois, tantos jogos depois, não se lhe vê ponta de um sorriso, o rosto mantém-se concentrado, focado. São os outros que se divertem da leveza com que os adversários caem, peças de dominó de uma tentativa para record do Guinness.

O outro lá ao fundo também não se ri. Tão destro como o outro é canhoto, joga às vezes à defesa, outras ao ataque. Não sorri nem se ri, não grita ou explode em alegria. Corre atrás da bola, com jeito para não magoar quem a tem, interessado a tentar apostar tudo num golpe de sorte: uma bola perdida, a corrida para a área e o remate forte. Aí não falha! Sei o que um tem talento e arreliará treinadores, o outro jogará pouco mas será o melhor amigo dos Paulos Bento deste mundo, preenchendo-lhe as pausas do discurso arras-ta-do.

Vem aí. Pergunto-lhe interessado, vendo-o como se tivesse acabado de sair da sala de aulas ou de uma repartição de finanças. Então, correu bem? Encolhe os ombros e olha para chão. Ganhei...

«Era capaz de viver na Bombonera» é um espaço de opinião de Luís Mateus, editor do Maisfutebol, que escreve aqui todas as semanas.