Todas as espécies mudaram ao longo da sua vida na Terra. Adaptaram-se, transformaram-se, mas só a humanidade persegue - algo que não pode ser dissociado da capacidade para pensar e sonhar - a perfeição. No entanto, não é algo a que todos aspiramos, mas sim um conceito abstracto que um ou outro em nome de todos, uma espécie de consciência colectiva, procura. Porque no outro prato ferrugento da balança existe algo que a humanidade não consegue expulsar do seu código genético, a tendência para se acomodar. Poderiam Leonardo da Vinci e os homens que nos fazem esperar horas nas Finanças ser filhos do mesmo pai? Por que não?

O futebol é como em tantas outras coisas o espelho da sociedade. Um mau jogador de campo tornou-se guarda-redes na infância porque não o deixavam jogar noutro lado; um avançado forte sem faro pelo golo virou defesa central; um destro exímio viu o pé esquerdo cegar irremediavelmente; e um 9 alto e possante apostou tudo no jogo de cabeça. A trivela não é mais do que o camaleão a confundir-se com o ramo da árvore; o pulmão de um «trinco» o desespero a lutar pelo lugar com quem não precisa de correr tanto; e a dureza a máscara perfeita para a impotência para o desarme.

Quando chegou aos 1,92 metros e olhou para baixo, ou talvez ainda antes entre miúdos da mesma idade, podia ter feito o que quase todos os outros fazem. Tornar-se alvo dos cruzamentos do futebol sem rodeios dos suecos, chegando mais alto para marcar golos atrás de golos. Mas talvez a sua costela não-nórdica ou simplesmente o olhar diferente sobre o jogo fizeram com que crescesse também em ambição. Drible curto, remate fortíssimo com ambos os pés e uma técnica soberba foram acrescentados aos dotes físicos que lhe permitem aguentar cargas, lutar corpo a corpo e atirar com acerto.

Comparamo-lo, mesmo que não publicamente, a Van Basten, porque sempre tivemos a necessidade de colar rótulos a embalagens e a pessoas, e porque existem de facto alelos comuns, estranhamente comuns, entre o descendente de bósnios nascido em Malmo e o Melhor do Mundo para a FIFA em 1992, natural de Utrecht. Marco mais elegante, perfeito em todos os movimentos, frio e sobretudo com uma sede de golos anormal. Ibra mais explosivo, capaz de sair do nada e decidir um jogo, reactivo ao ambiente e com mais gosto pelo risco. Sim, contar-se-ão os hat-tricks do nórdico ao longo da carreira como algo raro, enquanto o holandês fez bastantes, muitos dentro de um colete-de-forças chamado calcio, antes de uma lesão o afastar precocemente dos relvados.

Para Ibrahimovic, seria bom que os golos fossem contabilizados de maneira diferente. Que um jogo de futebol fosse também decidido por notas artísticas. Afinal, por que tem o golo de Carlos Alberto na final de 1970 de valer a mesma coisa que o penalty de Brehme duas décadas depois? Ou, estupidamente, os dois que El Pelusa marcou à Inglaterra no México pesem precisamente o mesmo no resultado que vingou as Malvinas... Aquele monumento na Luz perante o Benfica, o slalom gigante ainda no Ajax, o lob de calcanhar sobre Buffon no Euro-2004, de novo o calcanhar-pontapé de taekwondo na Serie A esta época mostram um gosto refinado pela excelência, falhando por vezes movimentos bem mais simples. Para o bem ou para o mal, o sueco sente-se um super-herói de honrados poderes, já pouco interessado nas coisas mundanas.

Ibrahimovic não é tão perfeito quanto Van Basten. Provavelmente, nunca estará mais perto de o ser do que hoje. Mas, se alguém, um dia, conseguir imitar aquele pontapé que chicoteou Dasaev na final do Euro cor-de-laranja será o sueco. Até podemos estar distraídos a olhar para o outro lado antes de ouvirmos alguém gritar, em português, italiano ou mandarim, depois do grito arrastado e histérico de golo: Ibracadabra!

«Era capaz de viver na Bombonera» é um espaço de opinião de Luís Mateus, editor do Maisfutebol, que escreve aqui todas as semanas.