Contaram-me, lembro-me, um dia. Disseram a uma futura grande promessa do futebol português qualquer coisa assim: Tu nunca serás alguém! Disseram mais como desabafo, como quando se atira uma toalha ao chão, com aquela sabedoria que as cicatrizes nos dá, que o tempo sublinha, ressalva e impõe. O miúdo, quase futura estrela, sentia o sangue a ferver, o rubor a inundar-lhe a face, depois de ter insultado o roupeiro e exigido uns calções novos, um novo uniforme, quando o seu apenas desfiava um pouco, apresentava um ligeiro rasgão, quase imperceptível ou sequer importante.

Aquele «Nunca serás alguém!», de alguém que tinha lutado metro a metro até sê-lo, ganharia peso suplementar todos os anos. Uma percentagem por cada réveillon, pelo adiamento na confirmação das expectativas, por cada má exibição e bilhete de ida para o banco. Por cada lamento. Aquele «Nunca serás alguém!», dito com pronúncia de proletário, de homem de infantaria, habituado a apostar a carne nos tackles e em todos os alongamentos do corpo, pesou como maldição. Foi ganhando as probabilidades nas casas de apostas, até tornar-se realidade, inverter-se a perspectiva e já não valer a pena apostar. A promessa morreria anos depois, tornando-se apenas um número numa estatística, cansada de tentar chegar a uma fasquia alta de mais para si.

Anos depois, quando o capitão João Moutinho tentou forçar a saída para Inglaterra, Miguel Veloso ter-se-á rido por dentro. Pensavam todos que eu é que ia fazer uma coisa destas, não era? Imagino que terá pensado, talvez mesmo dito em voz baixa ou confessado a um amigo à mesa de um café, talvez no mesmo onde Paulo Bento lhe descobriu um dia uma lesão no meio de uma página de jornal: Pensavam todos que eu é que ia fazer uma coisa destas, não era? Afinal, não. Podia sorrir. Tinha sido o capitão, o equilibrado Moutinho, mais velho do que um miúdo da sua idade, dono de muitas responsabilidades em campo, braço direito do treinador, menino querido dos adeptos, quem tinha dito «basta». Eu quero ir! Conseguia-se ver que queria, que queria mesmo. Mas recalcaria o desejo ao longo dos meses seguintes.

Chegaria a vez de Miguel reivindicar o seu «prémio» e de ser contrariado. Um treino em que não esteve, uma lesão que apareceu primeiro no jornal, rumores, trocas de palavras, os primeiros sinais de que o resto da época não iria correr bem. Uma escada subida aos saltos, de três em três degraus, um crescimento demasiado rápido, pouco sustentado.

É óbvio que imagino as mesmas palavras a serem atiradas por cima do ombro, enquanto o lateral-médio do Sporting penteia o cabelo com as mãos em dez direcções diferentes. Um «Nunca serás alguém!» sussurrado por um fantasma. Imagino Veloso a olhar para trás e a voltar a rodar o pescoço desgostoso até fixar de novo os olhos em si, antes de subir as escadas para o relvado. Vejo-o afastar com um movimento de braços o arrepio que sempre nos percorre a espinha, olha para as mesmas escadas que há dois ou três anos só via em sonhos, quando era central e miúdo, apenas aspirante a qualquer coisa mais do que era, seguindo à risca aquele contrato sem termo que se assina com os sonhos. Que diferente seria se aquelas escadas fossem as de Old Trafford ou de Nou Camp!

As palavras fazem eco agora, sem vivalma nos balneários. «Nunca serás alguém, Luís!»

Era capaz de viver na Bombonera» é um espaço de opinião de Luís Mateus, subdirector editorial do IOL, que escreve aqui todas as semanas. Siga-o no twitter