DESTINOS é uma rubrica do Maisfutebol: recupera personagens e memórias dessa década marcante do futebol. Viagens carregadas de nostalgia e saudosismo, sempre com bom humor e imagens inesquecíveis. DESTINOS.
ALCIDES: Benfica (de 2004 a janeiro de 2007)
Verão de 2004, o Benfica a tratar cicatrizes de guerra. A gestão danosa de Vale e Azevedo deixa um rasto de destruição desportiva e um caos nas finanças. O treinador Giovanni Trapattoni chega com a pesada responsabilidade de devolver o clube aos títulos, uma década depois. É bem sucedido.
Não faltam novidades no plantel. Umas mais acertadas (Quim), outras incompreensíveis (Everson, Paulo Almeida, Delibasic...). A mais enigmática é, porventura, a chegada de um menino campeão do mundo de sub20 pelo Brasil, um ano antes: Alcides Eduardo.
O estilo é agradável à vista. Muito alto, magro, senhor de um futebol elegante. O problema é que Alcides chega com uma grave lesão e passa meses, como o próprio recorda no DESTINOS do Maisfutebol, «a correr à volta do campo».
Emprestado pelo Chelsea, Alcides cumpre dois anos e meio na Luz. Ajuda a equipa a ser campeã nacional em 2005 e destaca-se pela polivalência. É um defesa central que cumpre a lateral direito e desenrasca bem a lateral esquerdo.
Mais de 15 anos depois da conquista desse campeonato com o senhor Trapattoni, Alcides atende-nos no final de mais um dia de trabalho na sua fazenda, no interior de São Paulo. E revela que está prestes a voltar ao futebol português para colaborar num futuro projeto do Rio Maior Sport Clube.
ALCIDES NO BENFICA:
. 2004/05: 11 jogos (campeão nacional)
. 2005/06: 18 jogos (3º lugar)
. 2006/07: 5 jogos * (3º lugar)
TOTAL: 34 jogos
* saiu a meio da época para o PSV
Maisfutebol – Bom dia, Alcides. Como vai a vida aí por São José do Rio Preto?
Alcides – Tudo tranquilo, tudo em paz. Infelizmente, a situação pandémica está muito má no Brasil e isso faz com que as coisas no futebol e na economia estejam paradas. Com a minha família está tudo bem, estamos isolados aqui na nossa fazenda no interior de São Paulo. Perdemos alguns amigos para a covid19 e temos de ter muito cuidado. Nos últimos tempos isolei-me bastante na nossa propriedade. Qualquer pessoa pode ser infetada e ter problemas graves, não podemos mesmo facilitar. Estamos a aguardar ansiosamente a vacinação, mas o Brasil é um país gigante e ainda vai morrer muita gente antes de estarmos todos protegidos.
MF – Está completamente afastado do futebol?
A – Não, não. Eu deixei de jogar em 2017, só com 32 anos, e durante algum tempo dediquei-me apenas à família. Temos uma propriedade grande e passo o dia a trabalhar com o nosso gado e a fazer o que é necessário no campo. Curiosamente, há pouco tempo comecei a trabalhar também como empresário e intermediário de futebolistas. Sempre quis estar no futebol e acho que tenho jeito para esta função. Pretendo estabelecer parcerias e levar atletas para Portugal também.
MF – Mantém ligação com as pessoas do seu tempo no Benfica?
A – Ainda ontem falei com o Nuno Gomes, por exemplo, uma das pessoas mais inteligentes que conheci no futebol. E ainda tenho contacto com o Rui Costa, um extraordinário ser humano. É um prazer lembrar-me que fui colega de equipa desses verdadeiros heróis do Benfica. Esses dois estavam sempre a ensinar os mais jovens, tinham uma enorme paciência.
MF – Deixou de jogar com apenas 32 anos e desde os 29 que estava em clubes pequenos do Brasil. Porquê?
A – Tive uma carreira boa e professores fantásticos. Poucos sabem, mas eu tive uma lesão gravíssima antes de começar a jogar no Benfica. Estive um ano e meio parado, muitos médicos diziam que eu nunca mais poderia voltar a um relvado. Recuperei bem e no Benfica aprendi com outros zagueiros de enorme qualidade: Luisão, Anderson, Ricardo Rocha, além dos meus outros companheiros. Tudo isso para dizer que eu passei por muito no futebol.
MF – Estava farto de ser futebolista profissional?
A – Eu comecei a jogar muito cedo. Saí de casa dos meus pais com 11 anos e aos 15 anos cheguei à Europa, para treinar no Schalke 04. Cansei-me da rotina stressante do futebol. Estar sempre fechado. Cheguei a passar três anos sem ver a minha família no Brasil. Clube, seleção, jogos, treinos, cansei-me da rotina. Depois joguei na Ucrânia quatro anos [Dnipro, 2008 a 2012] e tive de lidar com o frio e a solidão. Nessa altura valeu-me o meu melhor amigo, um português chamado Bruno, de Lisboa. Foi ter comigo e ficou lá a viver uns tempos. Cansei-me dessa vida, sinceramente.
MF - Foi muito tempo longe de casa.
A - Cansei-me de estar longe da minha mãe, dos meus filhos, e a tecnologia não era o que é hoje. Em 2014 ainda fiz outra loucura, joguei ao mesmo tempo por dois clubes no Brasil. Disputava o Paulistão pelo Ferroviária e o Campeonato Brasileiro pelo Atlético Paranaense. Estava a 200 quilómetros de casa e continuava sem ver a minha família. Era mesmo uma doideira. Tive uma vida maravilhosa no futebol, fui sempre bem remunerado, fiz grandes amizades, tive experiências luxuosas, mas fartei-me. Tinha estabilidade financeira e resolvi parar. Sinceramente, até estou bem fisicamente e ainda poderia estar a jogar, mas segui outra opção. Não queria mais stress. Apanhei também vários sustos e decidi que estava na hora de me dedicar mesmo à família.
MF – Que sustos foram esses, Alcides?
A – O Brasil não é seguro como Portugal. Aí praticamente não há violência. Aqui não é assim. É comum vermos nas notícias o rapto de alguém famoso. Os bandidos querem sequestrar para exigir dinheiro ou para ficar com um relógio valioso. Eu já fui sequestrado 18 vezes aqui no Brasil. Em 16 ocasiões foi um sequestro-relâmpago.
MF - O que significa isso, sequestro-relâmpago?
A - Os tipos apanham-te num semáforo, levam-te no teu carro, tiram-te tudo e soltam-te noutro sítio. É uma situação mais rápida. E estive duas vezes mesmo em cativeiro. Apanharam-me e levaram-me para sítios onde eu fiquei algum tempo, vendado e trancado. Fiquei 11 horas fechado, eles a quererem dinheiro, a maltratarem-me, a espancar-me. Consegui dar-lhes algum dinheiro e fui libertado, tive essa sorte, mas normalmente eles não libertam a vítima. Exploram o mais possível a família da pessoa capturada e no fim acabam por matá-la. Acabei por ter sorte. Mas roubaram-me um Rolex, brincos de diamante, correntes de ouro, perdi imensa coisa.
MF – Ficou traumatizado por essas experiências?
A – Fiquei. Não sei se em Portugal souberam, mas eu em 2012 fui detido pela polícia precisamente por andar cheio de medo no Brasil. Já tinha passado por alguns sustos e fui a uma festa com uma pistola, por segurança. Eu temia pela minha vida nessa altura. Expliquei às autoridades o que se passava e fui logo libertado. Nunca mais peguei em armas, prefiro pagar a alguns seguranças privados e manter a minha casa protegida. Sempre fui uma pessoa de boa índole, brincalhão, engraçado, e esses episódios foram assustadores. Felizmente as coisas melhoraram e hoje só contrato segurança se for fazer algum pagamento a um banco ou se tiver de fazer algum levantamento. Foram anos terríveis, mas as coisas melhoraram aqui na zona e estão mais seguras, mais tranquilas. Foram dias duros.
MF – Tudo isso aconteceu já depois de sair do Benfica?
A – Isso. Saí do Benfica no início de 2007 e depois disso fui 18 vezes sequestrado e uma vez preso. Bem, já passou, bola para a frente.
MF – Falemos então do Alcides e do Benfica. Chegou muito novo a Lisboa por empréstimo do Chelsea, correto? Nem 20 anos tinha.
A – O Benfica para mim é amor. Tenho um respeito gigante pelo clube. O Benfica foi uma mãe que me adotou, criou-me e depois soltou-me para o mundo do futebol. Eu era do Chelsea, fui emprestado ao Santos e sofri uma lesão gravíssima no joelho. Rasguei ligamentos, menisco, rótula, cartilagem, rebentei tudo. Isso foi em 2004. Eu fiz os primeiros três meses de recuperação no Brasil. Quando ainda estava internado no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, recebi a visita do presidente Luís Filipe Vieira, do meu empresário Giuliano Bertolucci e de um assessor do presidente – não me recordo do nome. Tinham um contrato de quatro anos para mim, quando eu estava lesionado e arrasado devido à lesão. Nem sabia se podia voltar a jogar e o Benfica faz isso comigo. «Temos uma ótima notícia para si, Alcides. Quando recuperar, o Benfica está à sua espera.» A partir dai tive o objetivo de respeitar e dar o máximo pelo Benfica, como se fosse um filho a defender a mãe ou o pai.
MF – Portanto, o contrato era um empréstimo válido por quatro anos ou o Benfica comprou o seu passe ao Chelsea?
A – Eu fui sempre jogador do Chelsea na minha passagem pelo Benfica. Foi um empréstimo longo, mesmo. E eu queria aproveitar este momento para agradecer o trabalho do meu amigo Rodolfo Moura na minha recuperação, porque eu cheguei ao Benfica ainda muito limitado. Eu pretendo viajar daqui a alguns meses para Portugal, porque estou envolvido num projeto com a SAD do Rio Maior Sport Clube – serei embaixador da marca, a convite do meu amigo Heitor, antigo proprietário do restaurante Casa da Picanha -, e quero dar um grande abraço ao senhor Rodolfo e um beijo naquelas mãos santas. Recuperou-me e até hoje não voltei a ter problemas no joelho. Acho que até ficou melhor depois da operação (risos). O Rodolfo estava sempre em cima, muito sério, muito exigente. Eu recuperei ao lado do Pedro Mantorras, que também estava a tentar voltar nessa altura, e o Rodolfo era inexcedível. Eu cheguei ali morto, sem expetativas, e o Rodolfo foi fundamental.
MF – O Alcides chegou ao Benfica com o estatuto de campeão do mundo.
A – É verdade, em 2003. Estávamos há dez anos à espera de um título desses e eu tive a sorte de fazer parte dessa equipa. Dani Alves, Adriano, Kléber, Fernandinho, e eu lá no meio deles. Fui titular e fiz todos os 90 minutos das sete partidas que o Brasil fez.
MF – Voltando ao Benfica. Chega lesionado e só começa a jogar em novembro de 2004.
A – Sim, com o senhor Trapattoni como treinador. Passei meses a correr à volta do relvado, depois comecei a fazer 15/20 minutos nos treinos. O Trapattoni foi um paizão. Via-me a correr, a correr, a correr e um dia virou-se e disse: «Luisão, que cosa fare com esse atleta daí? Só corre, corre.» (risos) O Luisão lá disse que eu era o Alcides, pertencia ao Chelsea e ao mesmo empresário dele, o Bertolucci, e estava a voltar aos relvados. O Luisão tinha muita moral no grupo e deu-me força, mesmo para eu jogar. Até que um dia o mister chegou ao Rodolfo e perguntou se me podia colocar no treino da equipa. E assim comecei a jogar, devagarinho. O técnico gostou muito da minha inteligência e da minha velocidade, aliás até me colocou várias vezes como lateral direito no lugar do Nelson e do Miguel, e até a lateral esquerdo quando o Léo não podia. Acho que atuei mais vezes como lateral do que como central, tive de levar com o Cristiano Ronaldo e o Wayne Rooney na Liga dos Campeões. Só saí porque o Ronald Koeman pediu ao Chelsea para me levar para o PSV. Só tenho coisas a agradecer ao Benfica. Fui muito ajudado pelo Simão, pelo Nuno Gomes, gente fantástica.
MF – Quantos anos de ligação teve ao Chelsea?
A – Nem sei bem. Foi dos meus 15/16 anos até o Dnipro comprar o meu passe ao clube. Foram muitos anos.
MF – No Benfica ainda trabalhou com o Fernando Santos?
A – Era o meu técnico quando eu saí para o PSV. Muito sério, muito exigente, naquele jeitão carrancudo. Excelente treinador e está a provar isso na seleção de Portugal. Ajudou-me bastante a evoluir em alguns aspetos e aproveito para lhe dar os parabéns por tudo o que tem feito no futebol. É uma pessoa que se preocupa muito com o lado humano do atleta, forma verdadeiras famílias. Tem facilidade em criar harmonia no grupo de trabalho e em ligar os atletas mais mediáticos aos mais humildes. No Benfica eram todos respeitados. Os que chegavam de táxi, os que chegavam de Bentley ou de Ferrari, era como se todos chegassem de autocarro. O Rui Costa é o melhor exemplo de gentleman que conheci. Tinha chegado do Milan e tratava os miúdos como se fossem iguais a ele. Orientava dentro e fora de campo. «Olha, faz assim, entrega rápido, procura não errar o passe.» O Rui era um educador. Eu acordava apaixonado todos os dias: ‘nossa, amanhã vou treinar ao lado do Rui Costa, do Nuno Gomes e do Petit’. O futebolista é um bocadinho preguiçoso, mas o Fernando não permitia isso. Ele é da mesma linha do Rodolfo Moura, ambos são muito rígidos e é assim que está certo.
MF – Como foi a festa do título de 2005?
A – Na altura não temos a real dimensão do feito. Há festa, alegria, mas acho que valorizo isso muito mais hoje em dia. O Benfica teve Eusébio, Mozer, Rui Costa. Agora eu tenho a noção de que estive dois anos e meio no clube deles. Eu participei nesse título. ‘Caramba, tenho de contar isto aos meus amigos e aos meus filhos’. No Brasil é normal cruzar-me com portugueses e ouvir ‘ei Alcides, jogaste no nosso Benfica’. É fantástico ver jogos na televisão e ver, por exemplo, o Ronald Koeman. Foi ele que me tirou do Benfica. Estive dois anos e meio muito bem em Eindhoven por culpa do senhor Koeman. São ótimas memórias, obrigado por esta conversa. Depois de um dia todo a tratar das minhas vacas e cavalos, não podia ser melhor.
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